16/10/2019

A teleologia na Idade Média


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A Marcelo Ronconi Lemes, companheiro de luta.


A feiura e a deformidade da história do materialismo mostram-se em toda a sua exuberância nas análises da Idade Média. Há aqui um emaranhado que deveria terrificar todo pesquisador lúcido. No entanto, apesar das obscuridades, um núcleo conceitual relevante pode ser discernido com clareza: até a elaboração do argumento cartesiano dos horrores, a fundamentação do ateísmo cientificamente válido permaneceu despida de qualquer laivo teórico significativo (o valor do argumento cartesiano dos horrores, aliás, é determinado por um olhar retrospectivo que se posta em solo darwiniano; isolado do darwinismo, o argumento de Descartes é incapaz de favorecer a fundamentação do ateísmo científico). Além disso, a exemplo do que ocorreu com os oponentes pagãos do materialismo, os filósofos cristãos da patrística e do medievo não souberam identificar nem mesmo o defeito mais óbvio da filogenia empedocliana.

No início da era cristã, o materialismo era expresso pelo epicurismo. Os epicuristas desempenhavam na Antiguidade um papel semelhante ao dos darwinistas: confrontados com os partidários do design inteligente, apontavam os fatos disteleológicos que maculam a natureza e tiravam da manga a ideia de que a infinitude do espaço possibilita a emergência até mesmo da configuração atômica mais improvável. Com a cristianização do Império Romano no século IV, o epicurismo, que no século III já não era expressivo, foi, ao que parece, eclipsado. Porém, diante de uma série de testemunhos que podem ser vistos como um pequeno afloramento rochoso na paisagem das ideias, quem poderia asseverar que um materialismo de cariz epicurista não teve defensores durante os séculos de dominação cristã? No que diz respeito à Idade Média, de acordo com Carl Watkins, “Talvez a declaração mais vistosa sobre dúvida radical ou descrença absoluta seja encontrada no Livro das revelações compilado em torno de 1200 por Pedro de Cornwall, prior da Santíssima Trindade em Aldgate (Londres)”. (1) As palavras de Pedro de Cornwall são as seguintes: “Há alguns que não creem que Deus existe. Eles consideram que o Universo sempre foi como ele é agora, e que ele é governado pelo acaso, e não pela providência”. (2) Na palavra “acaso” (chance) ressoa um timbre distintamente lucreciano, mostrando que a raiz conceitual do bom ateísmo não era estranha à heterodoxia do medievo.

Dignos de nota são também os testemunhos de alguns italianos processados pela Inquisição no século XVI. Francesco Calcagno teria dito “que o todo é governado pelo acaso” (che il Tutto se governava a caso); (3) Girolamo Garzoni, “que o mundo é obra do acaso” (ch’el mondo sia fatto a caso); (4) Alvise Capuano, “que o mundo foi criado pelo acaso”. (5) Os três italianos, cujos testemunhos estão longe de ser raridades nos arquivos inquisitoriais do período, atingiram o hotspot da filosofia ateísta quando admitiram o acaso como o fundamento ontológico do mundo. Considero, aliás, que seja um despropósito tremendo levar a sério a alegação de que Lucrécio e todos aqueles que se limitaram a aderir ao casualismo não seriam ateus no sentido forte do termo; há um meme (no sentido dawkinsiano do termo) particularmente tolo que infecta todos os debates sobre a história do ateísmo, segundo o qual uma crença teológica como a de Lucrécio seria incompatível com um ateísmo full-blown. Os cultores desse meme deveriam ter em conta o caso dos cosmólogos da atualidade que olham com seriedade para a hipótese do multiverso. Com efeito, um multiverso infinito seria habitado por um número infinito de civilizações; algumas formas de vida extraterrestres, certamente, seriam análogas aos deuses de Lucrécio. Porém, que sentido haveria em dizer que Victor Stenger, que é um dos expoentes do ateísmo científico atual, e que considera altamente provável a existência do multiverso, não seria propriamente um ateu? O que vale para Stenger deve valer para Lucrécio e para todos aqueles que põem o acaso na raiz da realidade.

É pena que tenhamos de perder tempo com um cacoete tão mesquinho. E como se não bastasse o uso picaresco dos conceitos, a crispação que hoje acomete os pronunciamentos sobre o ateísmo pré-moderno prejudica os esforços daqueles que buscam na antiguidade do ateísmo um meio de combater os preconceitos que estigmatizam os ateus. É certo que, assim, seria oportuna a proliferação de um meme que alisasse as rugas da atribuição de um ateísmo full-blown aos proponentes do casualismo.

Habitantes dos longínquos intermundia, radicalmente apartados de nossa realidade, os deuses concebidos por Epicuro não são designers inteligentes. E convém acrescentar que uma força cega, tillichiana, que não planeja de algum modo a criação do ser humano, pode ser chamada de “Deus”, se assim o quisermos, mas a ausência de direcionamento teleológico é suficiente para que ela seja identificada, em seu caráter essencial, com a matéria obtusa dos materialistas. Sartre percebeu muito bem o ponto levantado aqui, ao julgar que o conceito de design inteligente é o único relevante para a caracterização das operações de uma divindade hipotética:

Quando concebemos um Deus criador, esse Deus identificamo-lo quase sempre com um artífice superior; e qualquer que seja a doutrina que consideremos, trate-se duma doutrina como a de Descartes ou a de Leibniz, admitimos sempre que a vontade segue mais ou menos a inteligência ou pelo menos a acompanha, e que Deus, quando cria, sabe perfeitamente o que cria. (6)

Seja como for, o historiador do ateísmo não deveria dar muito peso à noção de advocacia. A existência de defensores de uma cosmovisão pode ser interessante do ponto de vista psicológico, mas nada tem a ver com as questões atinentes à lógica interna de uma cosmovisão. Assim, com respeito ao segmento temporal que se estende da Antiguidade greco-romana ao século XIX, reparo que Descartes e Leibniz, que não defenderam o ateísmo científico, fizeram mais pela fundamentação do ateísmo cientificamente válido do que todos os ateus pré-darwinianos; reparo também que o argumento cartesiano dos horrores, que recebeu de Leibniz uma glosa esclarecedora, poderia ter sido elaborado, ainda que não fosse advogado, por um filósofo cristão do medievo. A base desse argumento, a filogenia lucreciana, estava disponível e era intensamente discutida.

Pedro de Cornwall, Francesco Calcagno, Girolamo Garzoni e Alvise Capuano, cujos testemunhos são apenas vestígios de um grande continente oculto, tornam insustentável a tese de que um ateísmo full-blown não foi professado durante a Idade Média. Ao mesmo tempo, do ponto de vista lógico, é inepta a ênfase posta na ideia de advocacia. Tenho para mim que o ateu Jean Meslier, cuja ontologia espacialista sucumbiu diante das excentricidades da mecânica quântica, é menos relevante para a história do ateísmo científico do que a glosa leibniziana do argumento cartesiano dos horrores – uma glosa que, comprimida no meio de uma carta a Christian Philipp, foi elaborada por um cristão.

Um salutar deslizamento tectônico no terreno das ideias, é o que experimentamos quando a noção de advocacia teórica é relativizada. Desaparece assim a preocupação com a existência de ateus na Idade Média, e a ênfase passa a ser posta nas estruturas noéticas. A filogenia de Lucrécio, repito, estava na ordem do dia. Bastaria que o bispo Dionísio de Alexandria (século III), um dos que melhor esquadrinharam a filogenia de Lucrécio, atinasse com a catástrofe ontológica que inere à produção das espécies por meio de conjunções atômicas fortuitas; bastaria que um cristão empedernido examinasse a teoria evolutiva do árabe Al-Jahiz (776-868) e deduzisse suas consequências ateístas, com o único propósito de mostrar sua incompatibilidade com a doutrina cristã. Teríamos assim a formulação de um argumento que, embora não endossado por seus autores, seria superior aos do ateu Jean Meslier. (7)

Não é possível dizer muito mais sobre o ateísmo medieval. Certamente, merece explorações reiteradas e renovadas o veio subterrâneo daqueles que, advogando a ontologia casualista, ornaram a paisagem religiosa da Idade Média com a recusa da teleologia. No entanto, qualquer que seja a quantidade de personagens desenterrados, o fato é que, com toda probabilidade, nenhum materialista medieval chegou a propor uma filogenia cientificamente aceitável (sempre é bom ter em mente que o modelo de Lucrécio é incapaz de explicar as características das espécies da Terra). Ao mesmo tempo, parece igualmente certo que nenhum medieval, bordando sobre a filogenia de Lucrécio, obteve um argumento semelhante ao argumento cartesiano dos horrores.

Vejamos agora como se deu a defesa da teleologia pelos filósofos cristãos da patrística e do medievo. Com relação à mera afirmação de que há teleologia – afirmação bastante geral, que não especifica as características particulares da cosmovisão teológica que se pretende admitir –, é pronunciada a adesão desses filósofos à teleologia greco-romana. Com base na observação da natureza, e sobretudo na observação das adaptações orgânicas, que são as partes da natureza em que a aparência de design é mais conspícua, tais filósofos julgam possível estabelecer a existência de um designer inteligente do mundo. (8)

Não é à toa que Sócrates concentra sua atenção numa analogia entre as adaptações orgânicas e as obras de arte; não é à toa que Aristóteles recorre constantemente a uma analogia com a produção de artefatos e elege como alvo privilegiado de sua refutação do materialismo a filogenia de Empédocles. E o fato é que, em plena conformidade com o caráter geral da teleologia pagã, os pensadores cristãos mostram-se especialmente sensíveis às maravilhas do mundo biológico: Tertuliano exalta a industriosidade das coisas que hoje chamamos de “fenótipos estendidos”, tais como colmeias, formigueiros e teias de aranha; (9) Minúcio Félix declara que, “Mais do que qualquer outra coisa, é a beleza do nosso corpo que revela a existência de um artífice divino”; (10) Lactâncio escreve uma exposição do argumento do desígnio que é um verdadeiro tratado de fisiologia humana. (11)

Agostinho (354-430) propõe uma versão do argumento do desígnio que se apresenta como uma referência inespecífica às belezas naturais e como uma referência específica à regularidade dos fenômenos astronômicos:

Ainda que as vozes dos profetas permanecessem silentes, o próprio mundo, por meio da ordem manifesta em suas mudanças e em seus movimentos, e da bela aparência de todas as coisas visíveis, proclama não apenas que ele foi criado, mas que ele só poderia ter sido criado por Deus. (12)

Agostinho, porém, reconhece que o mundo biológico contém sinais evidentes de design, ao reparar que Deus não deixou “nem mesmo as entranhas do animalzinho mais desprezível, ou a pena da ave, ou a florzinha de uma planta, ou a folha de uma árvore, sem uma harmonia e uma concordância mútua entre todas as suas partes”. (13)

Tomás de Aquino (1225-1274) conserva a teleologia aristotélica, que é interna à matéria, e procura suplementá-la com um fundamento metafísico externo à matéria: a inteligência divina. Não se trata de anular a eficácia das causas segundas, não se trata de dissolver, como no ocasionalismo, a densidade ontológica da natureza, mas de radicar as operações dos objetos naturais num estrato ontológico mais profundo. Na quinta via que leva da inspeção do mundo empírico ao estabelecimento da existência de Deus, Tomás argumenta que, sem uma inteligência que guia um objeto a uma finalidade determinada, a teleologia interna é insustentável. Para Tomás, a natureza, o grande sistema das causas finais, é continuamente criada por uma mente que possibilita o devir teleológico aos objetos destituídos de consciência. (14) Mais uma vez, manifesta-se aqui, ainda que de modo um pouco indireto (já que Tomás não se opõe ao caráter imanente da teleologia aristotélica), a conexão entre o direcionamento teleológico e a existência de um designer inteligente; mais uma vez, um grande pensador cristão, talvez o maior, põe a existência de um designer inteligente no coração da teologia.

É verdade que, para Tomás, a teleologia é um traço geral da natureza. Há teleologia no derretimento de um cubo de gelo, assim como na formação do olho humano no útero. Contudo, não é difícil perceber qual é o setor da natureza em que, caso a teleologia tivesse de ser sacrificada, Tomás assistiria à ação do punhal com mais relutância. Não há comparação cabível entre a queda de uma pedra e a paulatina transformação de uma massa amorfa num estupendo sistema de adaptações orgânicas. Como observou Des Chene a respeito da eliminação cartesiana das formas aristotélicas,

Aqueles que, como os predecessores aristotélicos de Descartes, defendiam a existência de formas e de qualidades, podiam muito bem conceder que na física elas fossem supérfluas. Porém, que as coisas vivas fossem desprovidas de almas – que elas nada fossem além de máquinas – era, para muitos contemporâneos de Descartes, um obstáculo insuperável para a aceitação de sua filosofia natural. (15)

No Comentário ao livro de Jó, Tomás dá nomes àqueles que, à época, eram os inimigos da cosmovisão teleológica: “Demócrito e Empédocles atribuíam as coisas ao acaso. Porém, com uma diligência mais profunda na contemplação da verdade, os filósofos posteriores mostraram por meio de provas e de razões evidentes que as coisas naturais são movidas pela providência”. (16)

Em Sobre os artigos de fé, encontramos outra crítica de Tomás à filosofia genética dos materialistas gregos; aqui Tomás invectiva contra Demócrito e Epicuro, os quais sustentaram “que nem a matéria do mundo e nem o próprio mundo foram compostos por Deus, mas que o mundo foi produzido de modo aleatório pela convergência de corpos indivisíveis”. (17) Fica evidente assim que Tomás tem um olho especial para o aspecto artístico das adaptações orgânicas, já que rechaça uma teoria mecanicista que se mostra particularmente polêmica no caso da gênese das espécies. Não haveria por que argumentar contra a filosofia genética dos atomistas gregos se Tomás não admitisse que o mundo orgânico põe uma dificuldade especialmente aguda para as explicações materialistas.

A negação do materialismo ocorre pura e exclusivamente por meio da afirmação de algum tipo de teleologia irredutível. Praticando uma investigação científica da natureza, independentemente de qualquer recurso a uma suposta revelação divina, os filósofos cristãos creem poder provar a existência de um designer inteligente do mundo, e isso, em princípio, é suficiente para a refutação do materialismo. Não é demais repetir, aliás, que o uso do conceito de teleologia como parâmetro definidor do materialismo é polêmico. Ele entra em conflito com uma intuição indouta e muito comum, a de que o conceito de espaço é inseparável do conceito de matéria.

Os outros pontos doutrinais que constituem a cosmovisão cristã são derivados daquilo que os cristãos presumem ser uma revelação divina. Devemos notar, em primeiro lugar, que o estabelecimento do caráter fatual dos milagres bíblicos não é menos laborioso e intelectualmente exigente do que a teologia natural; em segundo lugar, que, ao condenar o fideísmo, a Igreja Católica determina que a admissão da ocorrência dos milagres bíblicos não depende de um ato de fé, mas do trato com evidências; em terceiro, que os milagres bíblicos constituem uma prova alternativa da existência de uma divindade inteligente que interage com o mundo; em quarto, que há uma distinção entre a revelação divina em que a coisa revelada está imediatamente presente e a revelação divina em que signos linguísticos substituem um referente extralinguístico que está fora do alcance da razão humana. Com relação a este último ponto, o mais complexo dos quatro, trata-se de perceber, por exemplo, que a ressurreição, ao contrário da afirmação de que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”, (18) é uma revelação em que nenhum muro linguístico separa o ser humano da coisa revelada. (19) Tais considerações devem ser feitas, ainda que de passagem, para que um mínimo de justiça seja feito à complexidade da cosmovisão cristã.

A teologia revelada é rejeitada pelos materialistas científicos, o mesmo se dando, nem seria preciso dizê-lo, com a teologia natural; por outro lado, no que se refere à fundamentação do materialismo cientificamente válido, não é possível afirmar que o medievo produziu algum argumento significativo (o ateísmo científico professado pela comunidade subterrânea de materialistas medievais, ao que tudo indica, não é mais bem fundamentado do que o de Lucrécio). No entanto, à luz de uma reflexão sobre os limites teóricos do materialismo científico, estaria longe da verdade quem dissesse que a Idade Média é um deserto de ideias relevantes. Admitindo-se que Dawkins é clarividente no seguinte aperçu do moderno materialismo científico: “Darwin expulsou Deus de seu velho refúgio na biologia, e ele, tentando se salvar, correu para dentro da toca de coelho da física”; (20) admitindo-se, em outras palavras, que nós não temos uma cosmogonia científica completa, e que, se desejamos ser científicos, devemos professar o agnosticismo com relação à existência de uma causa inteligente do estado inicial do Universo, sou levado a pensar que, ao formularem a doutrina da eficácia das causas secundárias, Agostinho e Tomás forneceram um modelo teológico que parece feito sob medida para acomodar a teoria darwiniana da evolução.

Agostinho vê a origem das espécies ocorrer por intermédio de causas secundárias, argumentando que a matéria criada por Deus está repleta de rationes seminales, e que, no curso do tempo, tais sementes dão origem às plantas e aos animais. (21) Agostinho, não há dúvida, jamais transigiu com o evolucionismo ou com qualquer teoria filogenética baseada na ideia de acaso. Testemunha-o o desprezo com que ele trata a filogenia de Epicuro; (22) testemunha-o o fato de que o idealismo platônico a que ele adere interdita toda possibilidade de transformação interespecífica (haveria uma profusão de ideias conectando as baleias modernas a seus ancestrais terrestres? Um lobo necessitaria de uma ideia para gerar um descendente com um focinho ligeiramente mais curto?). Mas nada disso impede que um aggiornamento de Agostinho seja proposto. De acordo com alguns teólogos liberais que se consideram herdeiros de Agostinho, dentre os quais se destaca Alister McGrath, as rationes seminales podem ser identificadas com as condições físicas iniciais que permitiram a ocorrência do big bang. (23) De fato, não há nada no conceito de ratio seminalis que imponha uma identificação obrigatória com a entidade hoje designada pelo nome de “zigoto”, ou com algo semelhante. É indiscutível que, em sua essência mais pura, o conceito de ratio seminalis compreende a operação das causas secundárias, e nada mais. Ocorre, porém, que a identificação das causas secundárias com as condições iniciais do cosmo é onerosa do ponto de vista moral. Ainda que Agostinho rejeite a hipótese da criação mediata da mente humana, a ideia de que as condições iniciais do cosmo são instrumentos de Deus esbarra no fato de que não há processo materialista de geração da complexidade orgânica que possa prescindir da ocorrência de um sem-número de ensaios malogrados. O aspecto lamentável da multiplicação de ensaios, é claro, são os rebotalhos orgânicos em que está presente o sofrimento animal.

O ser humano e todos os outros organismos do planeta emergiram da imoralidade, ou amoralidade, da evolução darwiniana. Sem crueldade, doença, catástrofe, eliminação de formas não adaptadas e distribuição aleatória de mutações nefárias – sem depravação e putanismo, no caso da seleção sexual –, os rostinhos angelicais que encimam os corpos humanos não existiriam. Ora, se algum Deus fala por meio da natureza, a mensagem é clara: a violência é boa; não apenas boa, mas a fonte de tudo o que há de mais sagrado sobre este planeta. Um Deus onipotente e benévolo, certamente, empregaria um método criativo mais limpo e mais digno.

Outra razão que dificulta o casamento entre Agostinho (ou, mutatis mutandis, Tomás) e o evolucionismo é o fato de que o surgimento de corpos humanoides (os únicos adequados à implantação de inteligências superiores imediatamente criadas) não foi replicado de modo independente na história da vida. Para que houvesse sentido na alegação de que a matéria é dotada de uma tendência intrínseca à geração de corpos capazes de abrigar inteligências superiores, o surto de corpos humanoides não poderia estar restrito a uma única linhagem evolutiva. Assim, não encontra respaldo nas evidências a ideia de que as condições cósmicas iniciais continham a semente do corpo humano.


Bibliografia

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Website:
http://www.giovannidallorto.com/saggistoria/calca/calca2.html


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) Providence, Experience and Doubt in Medieval England, p. 42.

(2) Ibid., p. 42.

(3) Processo a Francesco Calcagno [Brescia, 1550]. Disponível nesta página. Acesso em: 20 set. 2019.

(4) V. LAVENIA, L’arca e gli astri: Esoterismo e miscredenza davanti all’Inquisizione (1587-91), p. 319.

(5) Apud N. S. DAVIDSON, Lucretius, Atheism, and Irreligion in Renaissance and Early Modern Venice, p. 131.

(6) O existencialismo é um humanismo, p. 5.

(7) O argumento cartesiano dos horrores, embora originalmente construído como um corolário da filogenia lucreciana, só é efetivo quando incorporado à única filogenia cientificamente válida, o evolucionismo darwiniano. Ora, pode-se naturalmente perguntar se a religiosidade imperante na Idade Média foi um obstáculo não apenas para a formulação de um equivalente medieval do argumento cartesiano dos horrores (e já vimos que a resposta a essa questão é negativa), mas para a elaboração de algo idêntico ou semelhante ao darwinismo. Noto, em primeiro lugar, que Al-Jahiz concebeu claramente o vínculo entre as ideias de seleção natural e de microevolução; noto, em segundo lugar, que o tipo de atmosfera religiosa que existiu durante a Idade Média não é intrinsecamente hostil ao estudo da anatomia comparada, da embriologia e da arte dos criadores de animais. Nada impediria, assim, que um cristão medieval, com base nesse estudo, propusesse um análogo do darwinismo, desde que ele tivesse a precaução de não advogar a validade ontológica de sua teoria – procedimento que os copernicanos antirrealistas Osiander e Bellarmino souberam aplicar com maestria.

(8) É claro que a mera existência de teleologia, embora suficiente para refutar o materialismo, não está necessariamente atrelada à satisfação de nossos anseios existenciais mais profundos. Uma câmara de tortura é um primor de design inteligente; o cosmo aristotélico é impregnado de teleologia, porém, ao que tudo indica, Aristóteles não admite a ideia de vida após a morte; o cosmo judaico-cristão, igualmente, é encharcado de teleologia, mas o Deus da Bíblia é um monstro. Contudo, ainda que haja cristãos que rejeitam a mitologia do Jeová assassino e escravista, o fato é que até mesmo o tipo menos mitológico de cristianismo é corroído pelo problema do mal. Basta observar que o cristão mais esclarecido crê na existência de razões (explícitas ou recônditas) que, aos seus olhos, justificam os piores tipos de sofrimento. E eu afirmo sem pestanejar que eu me recusaria, caso o Deus cristão existisse, a habitar o palácio de bem-aventurança eterna erigido sobre as carcaças de milhões de vítimas inocentes da maldade humana.

(9) Against Marcion, livro I, cap. XIV, p. 25.

(10) The Octavius of Marcus Minucius Felix, p. 79.

(11) On the Workmanship of God, or the Formation of Man, passim.

(12) The City of God, livro XI, cap. IV, p. 440.

(13) Ibid., livro V, cap. XI, pp. 197-198.

(14) Suma teológica, primeira parte, questão 2, artigo 3, pp. 168-169.

(15) Spirits & Clocks: Machine & Organism in Descartes, p. 2.

(16) Apud P. HARRISON, Evolution, Providence, and the Problem of Chance, p. 265.

(17) Apud J. AERTSEN, Nature and Creature: Thomas Aquinas’s Way of Thought, p. 203.

(18) João 1:14.

(19) Quem dá valor à racionalidade não se deleita com argumentos injustos aduzidos contra a religião. O ataque a espantalhos conceituais pode ser útil como estratégia psicológica de conversão, mas é repugnante do ponto de vista racional. Um exemplo disso é o tipo de argumentação usualmente empregado contra o conceito de revelação divina. Vale aqui o que eu disse a respeito da Teogonia de Hesíodo: não há oposição entre o conceito de revelação divina e a filosofia. Os alienígenas de meu exemplo poderiam, decerto, proferir inverdades. Mas, a depender das circunstâncias específicas que eventualmente guarnecem uma mensagem revelada, a probabilidade de que ela fosse verdadeira poderia ser alta. Os alienígenas poderiam, por exemplo, revelar proposições adjacentes que fossem invariavelmente confirmadas, de modo a manifestar um caráter avesso à mentira. Além disso, o conteúdo particular da mensagem revelada poderia estar em estreita conexão com fatos admitidos pela razão natural, assim como a existência de ondas gravitacionais está em estreita conexão com a teoria da relatividade geral.

(20) A citação de Dawkins foi retirada de um elogio presente na contracapa do livro de Victor Stenger, God: The Failed Hypothesis. How Science Shows That God Does Not Exist.

(21) On the Trinity, livro III, cap. VIII, pp. 90-94.

(22) The City of God, livro XI, cap. V, pp. 441-442.

(23) Com muita pertinência, Stephen Hawking pergunta: “Deus criou as leis quânticas que permitiram a ocorrência do big bang?”. Cf. Brief Answers to the Big Questions, p. 34.



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