Ver também:
Capítulo I, parte 1 (Tales de Mileto)
Capítulo I, parte 2 (Anaximandro de Mileto)
Capítulo I, parte 3 (Anaxímenes de Mileto)
Capítulo II, parte 1 (Pitágoras e os pitagóricos)
Capítulo II, partes 2 e 3 (Xenófanes e Heráclito)
Capítulo II, parte 4 (Parmênides e os eleatas)
Capítulo II, parte 5 (Empédocles de Agrigento)
Capítulo II, parte 6 (Anaxágoras de Clazômenas)
Descartes e a teleologia
Por Giuliano Thomazini Casagrande
4. Apreciação geral do materialismo jônio

A substância geradora é associada com a vitalidade e com a inteligência, e portanto com a autonomia ou com o poder de governar; assim, o ilimitado de Anaximandro e o ar de Anaxímenes são dotados de entendimento. A substância geradora torna-se assim não somente a substância original, mas a substância que governa a ordem natural. (1)
O materialismo torna-se um sistema completo somente quando a matéria é concebida como puramente material – ou seja, quando suas partículas constituintes não são um tipo de matéria pensante, mas corpos físicos, que se movem em obediência a princípios meramente físicos, e, sendo em si mesmas desprovidas de consciência, produzem a sensação e o pensamento por meio de formas particulares de suas combinações. (2)

Está posta, assim, a diferença entre o materialismo científico e o monismo fisicalista dos jônios. Entretanto, o materialismo em sentido lato não foi devidamente justificado por esses filósofos. Com base num argumento como o de Tales, de que as sementes e os alimentos são úmidos, não temos o direito de professar o monismo materialista. Reconhecemos, assim, que os jônios foram materialistas de fato, e não de direito. Devemos aguardar pelos atomistas e pelos estoicos para encontrarmos a primeira justificação adequada do monismo materialista. O mesmo pode ser dito a respeito do hilozoísmo. A asserção de que a matéria move a si mesma, infundada na escola jônia, foi corroborada por desenvolvimentos científicos posteriores. (3)
De qualquer forma, ainda que sua cosmovisão materialista e hilozoísta seja infundada, o importante é observar que os jônios se empenharam em fornecer argumentos do tipo científico, sejam eles bons ou ruins. Essa atitude racionalista, na qual reside o real valor desses filósofos, marca a distinção entre o mundo do mito e o mundo da filosofia.
Há ainda outro traço da escola jônica a ser enfatizado pela história do materialismo, posto que ele consiste numa das marcas distintivas do materialismo estritamente definido, também conhecido como ateísmo. Há indícios suficientes de que os jônios admitiam a existência de uma divindade inteligente e providencial: segundo os testemunhos que nos chegaram, Anaximandro e Anaxímenes falavam do governo exercido pela divindade material sobre o cosmo. No entanto, o fato é que os pré-socráticos, de modo geral, renegavam as explicações teleológicas. Essa é a interpretação de Platão. (4) Os jônios opuseram-se, portanto, à religião tradicional dos gregos e privilegiaram as explicações materialistas (em sentido estrito). (5) Por causa disso, temos o direito de sustentar que o início do conspícuo conflito entre ciência e religião data da aurora do pensamento ocidental, ainda que a argumentação científica desenvolvida pelos jônios não seja válida de acordo com o atual estado do conhecimento.
Bibliografia
GRAHAM, D. W. Explaining the Cosmos: The Ionian Tradition of Scientific Philosophy. Princeton: Princeton University Press, 2006.
LANGE, F. A. The History of Materialism. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1957.
PLATÃO. Fédon. Edimburgo: Williams & Norgate, 1863.
Notas
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(1) Explaining the Cosmos: The Ionian Tradition of Scientific Philosophy, p. 107.
(2) The History of Materialism, Livro I, Seção I, cap. I, p. 4, nota 1 (grifos do autor).
(3) Eis uma via pela qual, ainda que de modo aparentemente paradoxal, a autossuficiência energética do Universo é assegurada pelo atual conhecimento cosmológico: se, como indicam as mais recentes observações, a energia total do Universo é nula – pois a energia cinética e a energia de repouso (energia de massa) são canceladas pela energia negativa da gravidade –, prescindimos do impulso de uma divindade externa à matéria. O movimento que vemos por toda parte veio do nada.
(5) Para Graham, no caso dos pré-socráticos, “a dimensão vitalista ou religiosa parece recuar para um plano secundário”. Cf. Explaining the Cosmos: The Ionian Tradition of Scientific Philosophy, p. 48.