18/06/2025

“Aperçu” da filosofia pré-socrática

Vimos em artigos anteriores que a religião homérica já era filosófica e científica (aliás, em maior grau do que certas proposições pré-socráticas). Uma tese, quer-me parecer, aventurosa, apesar dos dados apresentados em meu favor. Mencionei o historiador Robert Parker, que não hesita em atribuir ao religioso homérico um pensamento não apenas racional (fundado no raciocínio lógico e na observação dos fenômenos), mas nomológico: “O argumento das recompensas da piedade é em princípio empírico: a preocupação dos deuses pela humanidade é confirmada pelo tratamento diferencial dado aos bons e aos maus”. (1) Parker, no entanto, não é o único. Eu poderia citar o teólogo Jaco Gericke, um defensor do caráter filosófico de algumas ideias descritas no Antigo Testamento. Embora Gericke fale dos antigos israelitas, a cosmovisão analisada por ele não é essencialmente distinta da dos gregos:

[...] todo o ponto dos “milagres” (sinais) e da revelação por meio de teofanias, audição, sonhos, adivinhação e da história pode ser encarado como pressupondo uma epistemologia evidencialista (veja a frequentemente repetida fórmula “para que saibais...”). Os filósofos da religião [pelo menos, alguns] negarão que se possa verificar a existência de Deus nesse sentido empírico, porém, de acordo com o Antigo Testamento, o próprio Javé assume que isso é possível. (2)

Vimos também que Andrew Gregory e outros intérpretes consideram que a noção de lei natural assinala o surgimento da filosofia pré-socrática. Um substrato que flutua de modo imprevisível, de acordo com Gregory, seria incompatível com uma filosofia da natureza que prescinde de interferências divinas. O absurdo da opinião de Gregory é autoexplicativo. Se eu perguntasse a qualquer pessoa minimamente informada se o caos quântico é incompatível com a ciência e com uma cosmovisão livre de interferências divinas, que resposta eu obteria? Além do mais, vimos que o filósofo pré-milésio estava longe de ignorar a noção de lei natural. O testemunho de um certo Nicolau (um siracusano que proferiu um discurso após a derrota ateniense na Guerra do Peloponeso) talvez seja interessante como uma prova adicional do que já foi dito: “Que a divindade deva envolver em calamidades inesperadas [considerando-se o enorme poderio bélico ateniense] aqueles que embarcam em uma guerra injusta, e não temperam sua posição elevada com humanidade, é realmente um grande bem”. (3)

Nicolau, é claro, não tem em mente o caos ao proferir tais palavras! Ora, se ele concebe uma regra que se aplica à sucessão dos fenômenos, cai por terra o já citado argumento de Gregory: “[...] não há nenhuma evidência de que haja alguma relação entre o nível da ira de Posídon e a quantidade ou a intensidade do tremor que ele provoca”. (4) Seria cabível até mesmo que pensássemos num esquema abstrato como o seguinte: os homens emitem partículas sinalizadoras (feromônios ou coisas semelhantes) que atingem os sentidos divinos; os deuses então reagem de maneiras condizentes com as partículas emitidas. Em nossa realidade, a indução de chuvas às vezes é feita por meio da queima de cloreto de sódio, com a consequente liberação de uma fumaça que sobe até as nuvens e interage com as gotículas de água.

Gregory não é fiel sequer às afirmações explícitas da filosofia que ele próprio define como inovadora e fundada na compreensão de leis naturais. Julgo oportuna a seguinte apreciação do historiador David Sedley sobre a geologia platônica: “A civilização [...], graças a regularidades celestes combinadas à indisciplina residual do estofo constituinte do mundo, tem um ciclo de vida comparável [...] aos ciclos de vida finitos dos organismos individuais”. (5) Combinação de regularidades e de processos caóticos: peço ao leitor que avalie a compatibilidade entre o domínio incondicional das leis defendido por Gregory e o cenário descrito por Sedley. Levando-se em conta abstratamente os dois traços apontados (o acaso e a necessidade), a geologia platônica corresponde perfeitamente ao nosso mundo real. Cabe explicar que, segundo Platão, a civilização era periodicamente destruída pelo extravasamento dos setores caóticos da matéria, como quando, em nosso mundo, a aleatoriedade quântica poreja e gera efeitos como o câncer e as mutações que alimentam a seleção natural.

Toda a plausibilidade da interpretação de Gregory deriva do fato de que muitas vezes as expectativas dos religiosos são frustradas. Porém, a frustração eventualmente experimentada por um religioso como o siracusano Nicolau é análoga à do físico que fica admirado ao observar que a órbita de Mercúrio não se encaixa no paradigma newtoniano. Evidentemente, seria esdrúxula a hipótese de que os físicos perplexos com a precessão de Mercúrio desconhecem o conceito de lei natural. Devemos notar, inclusive, que a fratura entre os dois paradigmas divergentes mimetiza no plano das ideias a fratura real entre uma regularidade fenomênica e a eclosão de um lusus naturæ. A descoberta da anomalia de Mercúrio (feita por Urbain Le Verrier em 1859) é um lusus naturæ que não se distingue praticamente do surgimento objetivo de uma anomalia com as mesmas características. Tudo se passa como se a curvatura do espaço-tempo (prevista pela relatividade de Einstein) rebentasse abruptamente no próprio tecido da realidade e provocasse o clinâmen da órbita de Mercúrio.

Um crítico recalcitrante poderia ainda insistir que a religião homérica é essencialmente distinta da filosofia pré-socrática. Quanto a mim, talvez eu pudesse acrescentar alguns fatos como os seguintes: a alternância entre dias e noites (a imagem clássica da regularidade natural) deixará de existir quando um Sol moribundo devorar a Terra; a incidência de raios cósmicos pode provocar mutações biológicas absolutamente fortuitas; diversas pesquisas científicas procuram determinar se as orações intercessórias são eficazes; na Antígona de Sófocles, Creonte tem por certo que os deuses jamais honrariam aqueles que cometem atos sacrílegos: “Exatamente quando você viu pela última vez os deuses a celebrar traidores? Inconcebível!”. (6) Os termos postos na boca de Creonte são fortes e indicam claramente a consciência de regularidades.

Por fim, é preciso reconhecer que a ideia de moira diminui ainda mais a distância entre a religião homérica e o universo pré-socrático (um último prego no caixão da tese da revolução milésia). O vocábulo grego moira (“quinhão”, “parte que cabe a cada um”) é geralmente traduzido como “destino”. Lemos na Odisseia: “Pois não é seu destino [de Ulisses] aqui perecer longe de quem ama; determinam os fados que ele reveja parentes e amigos e que regresse a seu alto palácio e à sua terra pátria”. (7) Muitos intérpretes, é verdade, fazem grande caso das passagens dos poemas homéricos em que a moira aparece como friável, como quando Zeus pondera se deveria salvar da morte seu filho Sarpédon; (8) a preocupação desses intérpretes, no entanto, é despropositada. Um processo como o desenvolvimento embrionário, embora possa ser empiricamente robusto (o diamante é o mineral mais duro da escala de Mohs: lembrete da tenacidade relativa dos entes naturais), não é em princípio infenso a perturbações.

Igualmente interessante é o fato de que Homero às vezes transmite a impressão de que nem mesmo os deuses podem escapar à moira: “Há um debate nos estudos homéricos sobre se Zeus é superior ao destino ou não e se o destino em Homero é equivalente à vontade de Zeus”. (9) Ora, a ideia de deuses submetidos a um controle superior e inflexível sugere uma ontologia determinística bastante enfática. Tudo se passa como se o fundo último do real fosse constituído de uma lei superior: uma meta-lei (meta-law), na terminologia do físico americano Lee Smolin. Smolin elabora um cenário que, com a exclusão das injeções pontuais de design inteligente (milagres), parece ser um símile da religião homérica. Com efeito, Smolin sustenta que as leis naturais não são imutáveis – elas evoluem por meio de um processo cósmico de seleção natural (as mutações, aliás, ocorrem no caos quântico dos buracos negros). O problema, no entanto, é que o processo evolutivo seria governado por uma meta-lei. (10)

De resto, o próprio Gregory admite que a moira homérica é uma das bases do conceito pré-socrático de lei natural:

A ideia da moira que regula a relação entre os deuses e os homens pode ser importante para as primeiras ideias de leis naturais. Eu concordaria fortemente com a alegação de que há ideias pré-milésias que ajudaram a levar à ideia de leis naturais – do contrário a ideia parece vir do nada e nós acabamos com um milagre grego que nada explica! (11)

A declaração de Gregory é instrutiva por pelo menos duas razões: em primeiro lugar, Gregory dá a entender que, para ele, a ordem (estrutura) é um traço irredutível da realidade. (A ordem, para usar um termo pré-socrático, é a arché: o princípio de tudo o que existe.) A rejeição dos milagres, com efeito, pode ser compreendida igualmente como uma rejeição dos lusus naturæ (não necessariamente; porém, quando levamos em conta outras declarações de Gregory, a interpretação que proponho adquire probabilidade (12) ). Agora, ao sustentar que a ordem é um traço cósmico nativo, Gregory é obrigado a aderir a alguma modalidade de teleologia imanente (o organicismo ou o hilozoísmo). A explicação é muito simples: não há ateísmo científico sem a dissolução da ordem no estrato cósmico primordial.

Em segundo lugar, Gregory contradiz a si mesmo. Ao mesmo tempo em que afirma a continuidade entre a religião homérica e o pensamento milésio, ele engrandece a diferença, como se, de algum modo misterioso, o conceito de moira já não contivesse em si uma compreensão do conceito de regularidade. Pior ainda, a cosmologia do pré-socrático Demócrito é mais casualista (ou irregular) do que a teologia homérica. Para Demócrito, o determinismo só é visível na escala cósmica do infinito. Nos quadrantes mais restritos (por exemplo, na porção do Universo que habitamos), o acaso é o fator que explica a gênese dos mundos e dos seres vivos.

Não é verdade, portanto, que os pré-socráticos emergem como os primeiros filósofos e sequer como os primeiros proponentes de leis naturais. Resta analisar os outros caracteres comumente atribuídos aos pré-socráticos. É impressionante a quantidade de preconceitos que viciam nossa compreensão desses filósofos (porém, algum segmento da história das ideias está livre de interpretações preconceituosas?). Muitos dizem que, com Sócrates, a tendência cosmológica do pensamento pré-socrático foi substituída por uma tendência ética – um erro crasso. Há corpulentas reflexões éticas nos pitagóricos e em Empédocles (purificação da alma por meio do vegetarianismo e da negação da violência); Demócrito e Protágoras desenvolveram teorias sobre a origem da cultura humana; o Fragmento de Sísifo (provavelmente da autoria de Crítias) é uma formidável reflexão sobre a origem moral da crença nos deuses. Ao mesmo tempo, Sócrates, Platão e Aristóteles elaboraram cosmologias cuja riqueza ofusca tudo o que sabemos sobre os pré-socráticos.

Outros adoram dizer que o monismo (Anaximandro e Anaxímenes sustentaram que tudo é modificação de uma matéria fundamental) é extremamente significativo no contexto pré-socrático, deixando de observar que o monismo é um traço contingente de qualquer essência que possa ser atribuída aos pensadores do período. Na verdade, o dualismo e o pluralismo deveriam ser vistos como igualmente constitutivos de uma hipotética essência pré-socrática: Anaxágoras dividiu a realidade em duas entidades discretas (inteligência e matéria), Empédocles defendeu a existência de seis substâncias irredutíveis (ar, água, terra, fogo, amor e ódio), Demócrito conservou os deuses antropomórficos da religião tradicional (é um requinte tolo a alegação de que tais deuses são feitos de átomos, sobretudo quando lembramos que Homero e Hesíodo jamais conceberam deuses incorpóreos): além dos átomos e do vazio, duas realidades irredutíveis, “Demócrito aparentemente admitiu, no âmbito das restrições de seu atomismo, um papel para seres divinos propensos a prejudicar e também beneficiar os homens”. (13) Nem mesmo a gênese hídrica de Tales, famoso cartão-postal do pensamento pré-socrático, é particularmente expressiva: em Homero encontramos a seguinte proposição: “Oceano, origem dos deuses”. (14)

De acordo com uma das interpretações mais comuns, os pré-socráticos forneceram os materiais brutos para que Platão e Aristóteles compusessem suas sínteses. O mobilismo desbragado de Heráclito (nada é constante) é combinado com o imobilismo de Parmênides (toda mudança é ilusória). Platão aparece com a teoria dos mundos sensível e inteligível; Aristóteles, com a doutrina da substância e a distinção entre ato e potência. Os pré-socráticos, logicamente, não passariam de uma escada que conduz às iluminações dos grandes mestres do Ocidente.

Considero que “ontologismo” seja um nome apropriado para essa tendência filosófica. Por “ontologismo” entendo a preocupação com o conhecimento da natureza íntima da realidade, conhecimento este que inclui uma resposta exaustiva ao problema da natureza da mente e de sua relação com o corpo. Ainda quando não recobre perfeitamente a teoria aristotélica da substância e conceitos análogos, o ontologismo comporta todas as interrogações sobre a constituição última das coisas. O físico Lee Smolin expressa da seguinte maneira a preocupação ontologista: “Às vezes eu penso sobre o que uma rocha é quando tento dormir, e conforto-me com a ideia de que deve haver, em algum lugar, uma resposta à pergunta sobre o que o Universo é”. (15)

No que me diz respeito, julgo que há modos mais profícuos de se edificar uma cosmovisão penetrante, ainda que, como Smolin, eu muitas vezes medite sobre a intimidade ontológica das rochas. Eu tenho em mente, é claro, a defesa do ateísmo científico. Para os interessados no tema, é necessário que a recusa do ontologismo apareça revestida de uma pertinência especial. O motivo é que a afirmação do ateísmo sequer é possível sem que o substrato cósmico primordial seja colocado entre parênteses. Questão sumamente técnica: a cosmogênese quântica vem envolta numa colcha de determinações ontológicas de dificílima elucidação. Decerto, a cosmogênese quântica ocorreu; entendemos em linhas gerais seu caráter. Porém, a cosmologia materialista emperra quando se dispõe a penetrar seus arredores (uma esfera surge ex nihilo no espaço – precisamos desvendar a natureza íntima do espaço para reconhecer que um surgimento ex nihilo é relevante para o ateísmo?). Não admira assim que os religionistas procurem tirar partido do ontologismo.

Felizmente, a interpretação ontologista da filosofia pré-socrática não é a única possível. Há material abundante fora da controvérsia sobre o mobilismo. Veremos no próximo texto que os primeiros ateus da tradição ocidental apresentam argumentos que ignoram as preocupações ontologistas. Ainda assim, seria possível dizer que o ateísmo científico não se configura como uma ontologia profunda? O paradoxo é apenas aparente. O que primeiro chamou minha atenção para a falsidade desse paradoxo foi a leitura de Schopenhauer. Com sua metafísica da vontade, Schopenhauer pretende pesquisar a constituição interna da própria superfície fenomênica, abstendo-se de buscar o conhecimento do cerne da realidade. Assim como a rica estrutura molecular de uma bolha de sabão, a película fenomênica tem uma espessura ontológica. Nas palavras de Schopenhauer, “[...] esta filosofia não presume explicar a existência do mundo a partir de seus fundamentos últimos. Ao contrário, ela atém-se aos fatos reais das experiências interna e externa”. (16)

Eu não defendo a filosofia de Schopenhauer. Mesmo que eu enxergue algumas semelhanças entre a vontade metafísica e o gene egoísta (aliás, a contraposição entre fenótipo e genótipo é um delicioso exemplo de metafísica empírica à la Schopenhauer), e mesmo que hoje o idealismo seja advogado por filósofos muito hábeis, eu retenho de Schopenhauer apenas um esquema abstrato que me permite conciliar a recusa do ontologismo com a formulação de uma metafísica penetrante.

George Novack: marxista, inepto, simplório. Um belo exemplo da historiografia que privilegia a interpretação ontologista dos pré-socráticos. Novack enumera os traços mais essenciais (mais abstratos ou genéricos) da substância e dá a tarefa por encerrada. “A água de Tales é uma substância corpórea, logo Tales é materialista”. Que simplicidade comovente! Segundo Novack, “Entre o deus Oceano como o pai primordial [referência a Homero] e a água, a coisa física, como a base da explicação [referência a Tales], está a mudança decisiva do animismo para o materialismo, da religião para a filosofia”. (17) Uma prova adicional da inépcia de Novack é o fato de que ele classifica como materialista a filogênese de Anaximandro, um processo que provavelmente foi inspirado na ontogênese dos insetos tricópteros. (18)

Novack, em suma, contenta-se em fundar o materialismo no conceito de corpo, como se a mera afirmação do corporeísmo bastasse para que um filósofo fosse considerado materialista. Ora, o litmus test para que possamos averiguar o materialismo de um filósofo parece ser o modo como ele concebe a cosmogênese e a filogênese. Pois bem, uma filogênese concebida segundo o modelo embriológico é uma boa opção materialista? O ridículo da interpretação de Novack é facilmente demonstrado por meio de um exame sumário da teologia estoica. Além de acreditarem num Deus corpóreo, os estoicos foram os maiores proponentes da teoria do design inteligente na Antiguidade (o mundo era estruturado por um vapor sutil e inteligente).

A água de Tales também tinha poderes psíquicos irredutíveis. Daniel Graham, um intérprete muito mais erudito e perspicaz do que Novack, explica:

A substância geradora é associada com a vitalidade e com a inteligência e, portanto, com a autonomia ou com o poder de governar; assim, o ilimitado de Anaximandro e o ar de Anaxímenes são dotados de entendimento. A substância geradora torna-se assim não somente a substância original, mas a substância que governa a ordem natural. (19)

Cumpre observar também que, de acordo com João Filopono (século 6 EC), Tales teria dito “que a providência estende-se aos extremos e nada escapa à sua percepção, nem mesmo a menor coisa”. (20) Dificilmente uma proposição materialista! E ainda que se queira pensar que Tales provavelmente concebeu um esquema evolucionista semelhante ao de Anaximandro, teríamos razão em supor que o materialismo é compatível com uma filogênese que imita o desenvolvimento embrionário?

Não importa a constituição íntima da matéria, e sim como ela poreja no mundo real. Se a Terra fosse um superorganismo, a vida seria uma propriedade essencial da realidade. No entanto, diante de um organismo qualquer, podemos olhar para uma de suas partes e observar uma calcificação patológica. Com alguma sorte, podemos observar a geração espontânea de vermes em seus intestinos (eu proponho aqui apenas uma ilustração pedagógica, e não uma adesão à teoria da geração espontânea). O depósito de cálcio e as gerações espontâneas, como parece evidente, representam a irrupção do caótico – o porejamento da matéria. A matéria que poreja na forma desses fenômenos é aquela que verdadeiramente merece o nome de “matéria”. Matéria marginal, tão periférica quanto a película fenomênica de Schopenhauer. Extravasamento que se desenha na orla da substância. Não obstante, ocorrência repleta de pertinência ontológica.

A ontologia marginal está para o ontologismo assim como uma calcificação está para a totalidade orgânica. Imagine que todos os átomos do Universo são seres pensantes. Imagine que cada átomo tem até mesmo uma vida mental bastante rica. Em seguida, pense no estado caótico das moléculas de um gás. A imagem ora descrita contém a essência de minha crítica ao ontologismo, bem como a essência de minha aposta numa ontologia marginal. A propósito, ainda que saibamos que o Universo emergiu do caos quântico, não conhecemos a intimidade dos momentos cósmicos mais recuados. A compreensão da época de Planck (o caos primordial) requer uma teoria, ainda indisponível, que combina a mecânica quântica com a teoria geral da relatividade.

Muito se falou da água de Tales, do ilimitado de Anaximandro, dos números de Pitágoras, dos átomos de Demócrito. Muito se falou dos modos como Platão e Aristóteles sintetizaram o mobilismo de Heráclito com o imobilismo de Parmênides. Ao mesmo tempo, personagens como Sófocles, Eurípides e Empédocles (não me refiro ao Empédocles ontologista, mas ao pai da teoria da seleção natural) viram-se relegados a um plano secundário. O ponto a ser ressaltado é justamente o fato de que tais pensadores desenvolveram um conceito de matéria às margens do ontologismo. Com base nas intuições exploradas por eles, depreendemos que a matéria é uma coisa extensa que opera mecanicamente. Sobretudo, depreendemos que a matéria não é responsável por nenhum ordenamento providencial do mundo. Trata-se de uma enumeração frugal de atributos (extensão e comportamento não providencial), o que significa que ignoramos uma série de atributos que, se justificados, comporiam uma teoria ontologista da matéria: aquilo que ocupa os pensamentos de Smolin antes dele adormecer.


Bibliografia

DIODORUS SICULUS. The Persian Wars to the Fall of Athens. Austin: University of Texas Press, 2010.

GERICKE, J. Can God Exist if Yahweh Doesn’t? In: LOFTUS, J. (ed.). The End of Christianity. Amherst: Prometheus, 2011.

GRAHAM, D. W. Explaining the Cosmos: The Ionian Tradition of Scientific Philosophy. Princeton: Princeton University Press, 2006.

GREGORY, A. The Presocratics and the Supernatural. Londres: Bloomsbury, 2013.

______. Early Greek Philosophies of Nature. Londres: Bloomsbury, 2020.

HOMERO. Odisseia. São Paulo: Penguin, 2011.

______. Ilíada. São Paulo: Penguin, 2013.

NOVACK, G. The Origins of Materialism. Nova York: Pathfinder Press, 1965.

PARKER, R. On Greek Religion. Ithaca: Cornell University Press, 2011.

SCHOPENHAUER, A. The World as Will and Representation. Volume II. Nova York: Dover, 1966.

SEDLEY, D. Creationism and Its Critics in Antiquity. Berkeley: University of California Press, 2007.

SMOLIN, L. Time Reborn. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2013.

SÓFOCLES. The Three Theban Plays. Nova York: Penguin, 1982.


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) On Greek Religion, p. 4.

(2) Can God Exist if Yahweh Doesn’t?, p. 151.

(3) DIODORUS SICULUS, The Persian Wars to the Fall of Athens, Livro 13, p. 181.

(4) Early Greek Philosophies of Nature, p. 50.

(5) Creationism and Its Critics in Antiquity, p. 119-120.

(6) Antigone, p. 73.

(7) HOMERO, Odisseia, Canto V, p. 198.

(8) Ilíada, Canto XVI, p. 474.

(9) GREGORY, Early Greek Philosophies of Nature, p. 36.

(10) SMOLIN, Time Reborn, p. 242-243.

(11) GREGORY, A. Presocratics and Nature. Destinatário: Giuliano Tommasini Casagrande. [S. l.], 25 fevereiro 2025. 1 mensagem eletrônica.

(12) A importância do acaso na história das ideias não deveria ser ignorada. Um exemplo: a redescoberta do materialismo lucreciano na modernidade dependeu de um evento genuinamente casual: a preservação de uma cópia de De rerum natura num mosteiro alemão e a subsequente recuperação do manuscrito por Poggio Bracciolini em 1417. No entanto, podemos corroborar de outro modo a antipatia de Gregory pelos lusus naturæ: vimos acima que Gregory não se sente confortável com as explicações genéticas baseadas em “acontecimentos singulares”. Cf. The Presocratics and the Supernatural, p. 63.

(13) SEDLEY, Creationism and Its Critics in Antiquity, p. 134.

(14) Ilíada, Canto XIV, p. 419.

(15) Time Reborn, p. 266.

(16) The World as Will and Representation. Volume II, p. 640.

(17) The Origins of Materialism, p. 87.

(18) Ibid.

(19) Explaining the Cosmos: The Ionian Tradition of Scientific Philosophy, p. 107.

(20) Apud SEDLEY, Creationism and Its Critics in Antiquity, p. 7, nota 21.



16/05/2025

Os primórdios do pensamento filosófico ocidental

A história do ateísmo cientifico no Ocidente remonta à antiga Grécia (é um pleonasmo vicioso, contudo, falar-se em “ateísmo científico”). Houve ateísmo quando Eurípedes expôs a primeira formulação do argumento do mal que chegou ao nosso conhecimento; houve ateísmo quando Empédocles e os atomistas elaboraram a derivação materialista do mundo. Antes disso pode ter havido ateísmo, é claro, mas não conhecemos seus proponentes. Nada melhor, portanto, do que iniciar meu panorama histórico com um aperçu da religião grega tradicional. Ainda que nem todas as questões abordadas a seguir toquem diretamente o eixo temático deste panorama, a análise de uma porção de questões adjacentes é salutar ou mesmo imprescindível para a formação de uma imagem adequada da história do ateísmo científico.

Uma questão adjacente (dada a prevalência de algumas manias historiográficas, uma questão ousada) é a de se houve filosofia antes de Tales de Mileto. A análise da filosofia pré-milésia permite fortalecer a compreensão do ateísmo, pois abriga uma crítica dos NOMA (non-overlapping magisteria) de Stephen Jay Gould; permite colocar sob suspeita o red herring que consiste em exaltar o pendor nomológico milésio; permite ainda, entre outros benefícios, saber que o estabelecimento de um cânone ortodoxo de pensadores pré-socráticos trabalha em favor da agenda ontologista, a qual transforma a filosofia numa meditação sobre a substância (com a concomitante valorização de pensadores como Tomás de Aquino e Heidegger). O apreço por um cânone de pensadores pré-socráticos, aliás, além de refletir modismos escolares mesquinhos, impede o reconhecimento de que figuras como os dramaturgos gregos muitas vezes desenvolveram reflexões mais interessantes do que as dos pensadores considerados canônicos.

Todos conhecemos a narrativa que opõe a filosofia ao mito. Em primeiro lugar, é preciso dizer que a religião grega não é coextensiva ao mito, ou seja, que o mito agrega a ela uma série de informações suplementares sobre os deuses; em segundo lugar, que a religião grega é de jure independente do mito; em terceiro lugar, que o pensamento do religioso grego assentava no raciocínio lógico e na observação; em quarto lugar, que o mito não é a priori avesso à razão.

A religião grega popular estava de facto agregada ao mito, ainda que fosse de jure dissociável. O mito, afinal, compunha-se de informações que a prática piedosa podia ignorar. (Uma pergunta: o devoto católico depende da Suma teológica para exercer sua fé?) De acordo com Heródoto,

De onde cada deus surgiu, se todos eles sempre existiram, que forma eles tinham – tais coisas eram completamente ignoradas pelos gregos até anteontem, por assim dizer. Com efeito, Homero e Hesíodo foram os primeiros a compor teogonias, a dar aos deuses seus epítetos, a conceder a cada um seu cargo e sua ocupação, e a descrever suas formas. (1)

Antes desses poetas os cultos já eram praticados, sem dúvida, e os teólogos naturais, os oráculos e os videntes abriam uma fresta para a contemplação da natureza divina. Homero e Hesíodo, no entanto, enriqueceram o ideário religioso com um cabedal de informações adicionais – um conhecimento que permitiu o desnudamento efetivo da natureza das coisas e transformou a religião grega numa cosmovisão abrangente. As informações que os mitos trazem sobre a origem do mundo, com efeito, compõem aquilo que os pensadores de língua inglesa chamam de big picture: uma cosmovisão abrangente, uma visão totalitária da existência.

A teogonia de Hesíodo é uma cosmovisão materialista. A matéria, no caso, são o desejo sexual e a fisiologia reprodutiva dos deuses. De acordo com Stephen Scully, “O mais perto que o mito grego [de Hesíodo] chega de propor o design inteligente é com a figura de Eros, mas o desejo sexual e o destino biológico têm pouco a ver com a intenção consciente”. (2)

Os deuses hesiódicos originam-se de causas ininteligentes. Em alguns casos, o surgimento de um deus é aparentemente tão imotivado quanto um evento quântico: Gaia, uma das deusas primordiais, simplesmente brota do caos, uma realidade que, em Hesíodo, é definida como um grande espaço vazio (ainda não estamos na época de Ovídio, o poeta cosmogônico que concebeu o caos como uma matéria confusa). Os outros deuses, em sua maioria, provêm de relações sexuais análogas às humanas.

É de se notar que o caráter materialista da teogonia hesiódica não existiria sem o evolucionismo. Adstrita à partenogênese e a relações endogâmicas com seus próprios descendentes, Gaia tira de si mesma uma progenitura incrivelmente diversificada: de seu útero saem acidentes geográficos, corpos de água, monstros e criaturas marcadamente antropomórficas. Ainda assim, seria temerária a tese de que Hesíodo propôs um materialismo bona fide. Os pensadores da época, ao que parece, ignoravam o argumento do desígnio e a teoria do design inteligente; as adaptações orgânicas, para eles, não apareciam como um problema ou um explanandum. Como poderia, então, haver um materialismo substancial?

O máximo que consegui encontrar nos textos de Hesíodo foi uma passagem da história de Pandora em que Zeus confecciona uma característica engenhosa dos agentes morbosos (verdadeiras armas biológicas enviadas aos homens como punição): “[...] doenças para os homens, umas de dia, outras de noite, espontâneas, vagam, males aos homens levando em silêncio, pois tirou a voz o astuto Zeus”. (3) Ao contrário de uma cascavel, que anuncia sua chegada de modo ruidoso, as doenças fabricadas por Zeus aproximam-se em silêncio. Pode haver aí, de fato, uma compreensão implícita da engenhosidade das adaptações orgânicas, mas a evidência não me parece convincente. Agora, caso eu esteja errado, o estilo das explicações genéticas de Hesíodo torna-se enigmático. Afrodite brota da espuma que se desprende do pênis decepado de Urano: um pedaço de carne, portanto, engendra a deusa da beleza. O que deveríamos pensar da etiologia desse fenômeno? Se as adaptações orgânicas são realmente um explanandum interessante, poderíamos dizer que Hesíodo está ciente dos nexos físicos que comporiam um explanans adequado?

Podemos deixar de lado essa questão e perguntar, em vez disso, se a acusação normalmente dirigida aos mitos é verdadeira. É notória a narrativa inculcada nos alunos virginais já no primeiro dia de aula: mito e filosofia são maneiras antitéticas de explicar a realidade. O problema, no entanto, é que o mito não é a priori avesso à filosofia e à ciência. Alguma circunstância mundana poderia garantir que os mecanismos de transmissão cultural fossem fidedignos. Uma viagem no tempo seria uma circunstância ideal. Os cérebros poderiam ser filmadoras confiáveis e as pessoas poderiam ter uma aversão inata ao ato de mentir (a ideia de proferir uma mentira maliciosa seria tão repugnante quanto a ideia de ingerir querosene). Os deuses poderiam realizar no presente milagres tão ou mais impressionantes do que os eventos narrados pelos poetas (atribui-se ao deus Asclépio, por exemplo, a criação de um globo ocular onde antes havia apenas uma órbita vazia (4) ).

Tais hipóteses dizem respeito à questão epistemológica da origem dos mitos. Agora, com relação ao conteúdo propriamente dito dos mitos (e não mais à origem), digo que não há nada de a priori implausível na ideia de que alienígenas resultantes de um processo evolutivo decidem criar a humanidade. Não há nada de a priori implausível sequer na ideia de que a Terra e o cosmo são superorganismos. Os telescópios mais modernos captam uma estrutura colossal que recebe o nome de “pilares da criação”. Trata-se de um aglomerado de poeira e gás situado na nebulosa de Águia. Nas fotografias podemos ver três torres imponentes – uma delas poderia ser o pênis de Urano, caso ele não tivesse sido decepado. Ademais, há vários adeptos esclarecidos do candomblé e da umbanda, religiões que, a meu ver, não diferem de modo significativo da religião grega.

Com muita razão David Berlinski, depois de descrever a miríade de estranhezas (muitas delas em franca oposição a um materialismo ingênuo) que hoje integra a compreensão científica do mundo, declara: “Se amanhã os físicos determinassem que a física de partículas requer um acesso à ubiquidade do corpo de Cristo, tal doutrina seria prontamente declarada como um princípio físico e tratada de modo correspondente”. (5) Ora, o cardápio é realmente suntuoso. A imagem de mundo sancionada pela ciência atual é mais fantástica do que os sonhos mais loucos da mitologia. Temos até uma recente comprovação empírica da metempsicose (ou, não sei ao certo, da ressurreição da carne ou da sobrevivência da alma) – após a morte, algumas células transformam-se em organismos diferenciados e autônomos: “Pesquisadores descobriram [...] que células solitárias de pulmões humanos podem agrupar-se e dar origem a pequenos organismos multicelulares capazes de perambular pelos arredores”. (6) Os interessados devem procurar por biobots, xenobots e anthrobots.

No mundo real há leões-asiáticos, mas não leões-europeus (uma subespécie extinta); há metempsicose de certos elementos vitais, mas não da personalidade; há animais que podem regenerar membros amputados (salamandras, estrelas-do-mar e outros), mas não humanos capazes de fazê-lo; há ornitorrincos, mas não sereias; há gatos mortos-vivos, mas não gatos bioluminescentes; há partículas (e até mundos) que surgem espontaneamente do nada, mas não há, ao que tudo indica, monopolos magnéticos. As coisas mais absurdas e contrárias ao materialismo ingênuo existem; uma infinidade de variações minúsculas e prosaicas, não. É um ignorante, portanto, quem considera que o mito é a priori incompatível com a filosofia e com a ciência. É igualmente inepta a estirpe de fisicalistas que, a exemplo de Hobbes e Feuerbach, considera que uma entidade imaterial seria contraditória e filosoficamente inadmissível – de acordo com as propostas mais ousadas da gravitação quântica, o espaço-tempo emergiu de um estranhíssimo substrato imaterial.

O mais intrigante é que a vingança dos mitos ocorre da maneira mais monstruosa e insolente que se poderia imaginar. A teoria da inflação é o modelo cosmológico mais aceito atualmente. Uma de suas predições é a existência de um multiverso que se alastra indefinidamente no espaço. Ora, dado o número infinito de eventos acidentais na amplidão do multiverso, os físicos calculam que todas as configurações possíveis seriam realizadas algures.

O mito, contudo, era uma parte contingente da religião grega. Vimos a declaração de Heródoto sobre o caráter adventício das explicações mitológicas: “De onde cada deus surgiu, se todos eles sempre existiram, que forma eles tinham – tais coisas eram completamente ignoradas pelos gregos até anteontem, por assim dizer”. (7) Dissociada do mito, a religião grega limitava-se a explicar o estado presente do mundo: com base na observação e no raciocínio lógico, o teólogo desprovido das informações trazidas pelo mito podia inferir que os fenômenos do mundo atual eram operados por uma casta de seres sobre-humanos.

O que me deixa perplexo, no entanto, é a facilidade com que se costuma afirmar que a filosofia teve início com Tales. O religioso pré-milésio estabelecia correlações entre os fenômenos. Muitas vezes ele observava, por exemplo, que a prosperidade de um povo estava associada à prática judiciosa de sacrifícios. Os cientistas atuais não raciocinam de modo diferente. Hoje procura-se saber, entre outras coisas, se a religiosidade está associada à menor incidência de doenças cardíacas. Uma covardia desprezível, portanto, é a mania dos que insistem em enxergar num filosofema esfarrapado de Tales uma revolução filosófica. Por mais que eu procure ser caridoso, não consigo notar na gênese hídrica de Tales uma teoria particularmente sofisticada. Ora, o contrário parece ser verdadeiro: sofisticado é o raciocínio do religioso pré-milésio. Não é a gênese hídrica, afinal, que ainda perdura na ciência moderna.

Parece óbvio que os NOMA de Gould (os quais já existiam antes da formalização de Gould) são um dos princípios epistemológicos que orientam essa tendência historiográfica. Admitindo-se que a ciência e a religião consistem em domínios separados e imiscíveis, pretende-se (oh, mistério!) reduzir o potencial crítico da ciência e imunizar o núcleo duro da religião. Tal é o efeito almejado quando se defende a pureza das categorias – no caso em questão, a clivagem entre a filosofia e a religião grega tradicional. Não é por outro motivo que muitos hoje excluem o design inteligente da órbita da ciência.

Robert Parker, um dos maiores estudiosos atuais da religião grega, é um dos poucos que contrariam a narrativa dominante. A leitura de Parker traz-nos alívio e um pouco de ar puro; depois de estabelecer um paralelo entre a obra de William Paley (o célebre teólogo natural do início do século 19) e as evidências que sustentavam a crença de Sófocles e Píndaro (um dramaturgo e um poeta), Parker declara:

A maior evidência [...] da existência dos deuses é o fato de que a piedade funciona: a recompensa pela veneração dos deuses em conformidade com modos consagrados pela tradição é a prosperidade. O contrário é o fato de que a impiedade conduz ao desastre; e, embora o nexo entre a piedade e a prosperidade não seja frequentemente usado como prova da existência dos deuses, as aflições dos maus são realmente uma evidência bastante citada. (8)

Parker privilegia a correlação entre a prosperidade e a prática de sacrifícios, mas outros tipos de evidências podem ser mencionados. A visão de fantasmas, os sonhos proféticos e os milagres, aliás, constituem um corpo de evidências ainda mais portentoso do que as correlações analisadas por Parker. Eu considero particularmente significativo o fato de que Sexto Empírico estabelece um paralelo entre os eidola de Demócrito e a origem da crença nos deuses gregos: “Foi com base na aparição dessas coisas [eidola] que os antigos vieram a crer na existência de deuses”. (9) Os eidola são filmes atômicos emitidos pelos organismos; são como as luzes (fótons) provenientes de estrelas que desapareceram há milhões de anos, mas que continuam a impressionar nossos olhos. Como explica Gregory,

Eidolon tem um significado mais amplo do que “imagem” e pode significar “espectro” ou “fantasma”. Homero faz um uso significativo do termo neste sentido através da Ilíada e da Odisseia, ele emprega eidolon ao falar de fantasmas, espectros e visagens que aparecem aos heróis em vários estágios e desempenham uma parte importante na trama. (10)

Torna-se um pouco estranha, assim, a atitude dos que se opõem à hipótese de uma filosofia pré-milésia. Eles não se dão conta do embaraço em que caem, pois jamais pensariam em excluir Demócrito do grupo dos filósofos pré-socráticos. Seria igualmente bizarra a opinião dos que considerassem que as cosmologias milésias (Anaxímenes, por exemplo, sustentava que o mundo advinha da condensação do ar) são peças teóricas mais robustas do que as pesquisas sobre fantasmas e outros fenômenos parapsicológicos. Quem hoje propusesse uma cosmogonia hídrica seria prontamente ridicularizado (assim como são tratados os que acreditam numa Terra plana); a mediunidade, em contrapartida, ainda exige dos céticos a elaboração de críticas minimamente cuidadosas.

De acordo com Taylor, Demócrito preserva o nervo da religião tradicional:

A teologia de Demócrito [...] esforça-se para incorporar alguns dos traços mais característicos dos deuses da crença tradicional, notadamente seu antropomorfismo, poder, longevidade (mas não, crucialmente, imortalidade), interação pessoal com os homens e interesse (benéfico ou maléfico) na vida humana, à estrutura de uma teoria naturalista e materialista. Ela é, portanto, não obstante a audaciosa originalidade de sua explicação da natureza divina, notavelmente mais conservadora do que algumas de suas predecessoras (especialmente a teologia não antropomórfica de Xenófanes) [...].(11)

Os deuses hesiódicos tinham origem na matéria; os deuses democritianos, igualmente. Para Demócrito, o percurso era indireto: os homens formados por conjunções atômicas casuais emitiam eidola que, à maneira das assinaturas espectrográficas dos elementos químicos, conservavam resquícios dos organismos emissores. A atmosfera estava, por conseguinte, repleta de ectoplasmas, simulacros ou energias de organismos defuntos.

Taylor elabora a seguinte síntese da teoria de Demócrito:

De acordo com Cícero, Plutarco e Sexto, alguns desses eidola são nocivos e alguns são benéficos; Sexto acrescenta que eles predizem o futuro falando com os homens. O fraseado das passagens de Cícero e de Sexto deixa em aberto se o bem e o mal feitos aos homens são concebidos como meros efeitos naturais dos encontros com os eidola, ou como efeitos intencionalmente provocados por eles; Plutarco, por outro lado, claramente interpreta Demócrito como um defensor da última perspectiva, uma vez que, segundo Plutarco, Demócrito pensa que alguns eidola são maliciosos e faz orações [no sentido de rezar] para encontrar somente aqueles que são propícios [...].(12)

Imagine a atmosfera apinhada de deuses mortos (eidola inconscientes, peles abandonadas por cobras); seus corpos diáfanos vagueiam como os corpúsculos de células mortas que flutuam no humor vítreo dos olhos (as manchas e os filamentos que costumamos enxergar contra um céu azul); pense, se preferir, no oceano de radiações eletromagnéticas que preenche o espaço. A oração propicia o encontro com eidola benfazejos, pois a disposição mental cultivada pelo indivíduo vivo harmoniza-se com a assinatura psíquica armazenada em cada eidolon (talvez o estado mental produzido pela oração bloqueie a intromissão dos eidola malfazejos – como uma conexão de Wi-Fi); um problema psicológico como a depressão, ao que tudo indica, seria atribuído por Demócrito a uma classe específica de encostos. Seria exagero afirmar, então, que Demócrito conserva até mesmo o valor dos sacrifícios tradicionais? Se o preparo de uma oferenda pode servir de apoio para a criação de um estado mental favorável, vemos que Demócrito desponta como um legitimador de alguns dos aspectos mais repulsivos da religião grega.

Além do mais, que grave inconsistência haveria em se pensar que as fumaças dos sacrifícios contêm fragrâncias capazes de atrair ou afugentar algumas espécies de eidola? Diz a lenda, com efeito, que o aroma de pãezinhos recém-saídos do forno deu a Demócrito uma sobrevida de três dias: “Assim, aproximando-os das narinas, conseguiu sobreviver durante todos os dias da festa [das Tesmoforias]. Transcorridos os três dias festivos, ele expirou sem o mínimo sofrimento, com a idade de cento e nove anos [...]”. (13) A passagem, se não por outro motivo, mostra um filósofo atento às propriedades pneumatológicas dos eflúvios, o que nos permite pensar que as emanações resultantes da queima de oferendas poderiam interagir com os eidola dispersos no ar. Convém notar, ademais, a concepção de alguns pitagóricos, aparentada à de Demócrito. Aristóteles registra a seguinte opinião: “E o que dizem os pitagóricos parece seguir o mesmo raciocínio, pois alguns deles declararam que a alma são as poeiras no ar; outros, por sua vez, que ela é o que faz com que se movam”. (14)

Demócrito não teria dificuldade para admitir que os grãos de poeira dançantes (e os eidola espalhados pela atmosfera) são propelidos pelas colisões aleatórias de átomos de ar (ele defendia, com efeito, a gênese acidental dos seres vivos). Tratar-se-ia, no caso, de uma intuição do movimento browniano, o movimento aleatório de partículas suspensas num líquido ou num gás. Outra imagem sugestiva é a do vácuo quântico, uma porção de espaço em que fervilham partículas provenientes do nada (neste exato momento, de forma análoga, trilhões de fótons são emitidos espontaneamente pela lâmpada de minha sala). Demócrito acreditava, inclusive, que a Terra era ocasionalmente bombardeada por detritos malfazejos oriundos do grande cosmo: “Sabemos que Demócrito disse e escreveu que, quando mundos situados fora do nosso são destruídos, corpos alienígenas precipitam-se para cá e são frequentemente a fonte de pestes e outras ocorrências extraordinárias”. (15)

“Ocorrências extraordinárias”: Demócrito refere-se, evidentemente, a processos estocásticos. O extraordinário é o imprevisível (pelo menos, para as mentes incapazes de fazer uma leitura profunda dos mecanismos subjacentes – nem todos têm as prerrogativas epistêmicas do demônio de Laplace, a entidade imaginária capaz de obter informações completas sobre o estado físico das partículas). Daí a imagem de mundo que se sobressai das ideias supracitadas de Demócrito: de um lado, vivemos imersos num aquário repleto de restos mortais de deuses; de outro, sofremos os ataques imprevisíveis de detritos alienígenas. Agora a pergunta: seria forçar demasiadamente os limites da ontologia democritiana se admitíssemos que a aleatoriedade quântica (ou, para os mais castiços, o clinâmen epicurista) poreja de formas variadas em nosso mundo macroscópico? O seguinte cenário esboçado pelo fisiologista americano Dennis Trumble é bastante elucidativo:

[...] nossos corpos são constantemente bombardeados por radiação gama proveniente de fontes naturais como o rádio e o potássio-40 (geralmente encontrado em solos, águas, carnes e alimentos ricos em potássio), e você pode apostar sua vida no fato de que alguém em algum lugar do mundo desenvolverá câncer nos próximos minutos, ou horas no máximo, pela mera razão de que um átomo instável em algum lugar da Terra (ou fora dela) emitiu de forma aleatória um fóton altamente energético que simplesmente calhou de aterrissar no lugar errado no momento errado. (16)

As várias transições suaves expostas acima mostram que, além de ser filosófica e científica, a religião grega tradicional não foi violentamente negada pelo naturalismo pré-socrático. É plenamente concebível um cenário em que os eidola de Demócrito (compreendidos como deuses mortos ou películas inconscientes) apresentam um comportamento irregular e interagem de forma estocástica com os homens.


Bibliografia

ARISTÓTELES. De anima. São Paulo: Ed. 34, 2006.

BERLINSKI, D. The Devil’s Delusion. Nova York: Basic Books, 2009.

COTTER, W. Miracles in Greco-Roman Antiquity. Londres: Routledge, 1999.

GREGORY, A. The Presocratics and the Supernatural. Londres: Bloomsbury, 2013.

HERÓDOTO. The History. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952.

HESÍODO. Trabalhos e dias. São Paulo: Hedra, 2013.

LAÊRTIOS, D. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.

NOBLE, P. A.; POZHITKOV, A. Biobots arise from the cells of dead organisms − pushing the boundaries of life, death and medicine. The Conversation, 12 set. 2024. Disponível nesta página.

PARKER, R. On Greek Religion. Ithaca: Cornell University Press, 2011.

SCULLY, S. Hesiod’s Theogony: From Near Eastern Creation Myths to Paradise Lost. Oxford: Oxford University Press, 2015.

TAYLOR, C. C. W. The Atomists: Leucippus and Democritus. Toronto: University of Toronto Press, 2010.

TRUMBLE, D. R. The Way of Science. Amherst: Prometheus, 2013.


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) The History, Livro II, cap. 53, p. 60.

(2) Hesiod’s Theogony: From Near Eastern Creation Myths to Paradise Lost, p. 25.

(3) Trabalhos e dias, p. 37.

(4) COTTER, Miracles in Greco-Roman Antiquity, p. 17.

(5) The Devil’s Delusion, p. 54.

(6) NOBLE, P. A.; POZHITKOV, A. Biobots arise from the cells of dead organisms − pushing the boundaries of life, death and medicine. The Conversation, 12 set. 2024. Disponível nesta página.

(7) The History, Livro II, cap. 53, p. 60.

(8) On Greek Religion, p. 3.

(9) Apud TAYLOR, The Atomists: Leucippus and Democritus, p. 141.

(10) The Presocratics and the Supernatural, p. 195.

(11) The Atomists: Leucippus and Democritus, p. 215-216.

(12) Ibid. , p. 214.

(13) LAÊRTIOS, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 262.

(14) De anima, p. 50.

(15) PLUTARCO apud GREGORY, The Presocratics and the Supernatural, p. 187.

(16) The Way of Science, p. 12.



30/04/2025

A novidade pré-socrática (2)


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A filosofia poderia avançar e adquirir um grau elevado de sofisticação, ainda que não substituísse os deuses tradicionais por objetos inanimados. (Devemos notar, de qualquer modo, que a substância originária dos milésios não era um corpo desprovido de sensações e de pensamentos; dentro dela havia, contudo, regiões governadas por princípios mecânicos, assim como, em nossos corpos, a formação de cálculos, calcificações e abscessos obedece à causalidade mecânica mais crassa.) A hipótese de Gaia, mais próxima de nossa percepção moderna, estabelece que o superorganismo divino é composto de órgãos: “À medida que Lovelock continuou a refinar Gaia através das décadas de 1970 e 1980, ele descreveu uma anatomia terrena em que certos órgãos (florestas tropicais, desertos e mares costeiros) tinham maior importância fisiológica do que outros”. (1)

É verdade que a filosofia pré-socrática é mais sofisticada do que a filosofia homérica, mas o que impediria que o aprumo científico fosse obtido com a conservação dos deuses tradicionais? O estudo da fisiologia divina pode ser, de fato, tão sofisticado e curioso quanto o desnudamento de processos mecânicos. Em Homero já encontramos algumas informações instigantes sobre o icor, um líquido que flui pelas veias dos deuses e procede do metabolismo de néctar e ambrosia. (2) Antes que se diga que as ideias de Homero carecem de sofisticação filosófica, é preciso lembrar que os epicuristas, mentes que se ataviavam com a excelência da cultura científica, meteram-se em desavergonhadas especulações sobre a fisiologia de uma tribo de deuses antropomórficos. De acordo com o epicurista Velleius, “Os deuses têm uma certa figura que nada tem de concreta, de sólida, de expressamente substancial, de protuberante; mas é pura, lisa e transparente”. (3) Ora, a exploração da fisiologia divina poderia abarcar até mesmo a evolução dos deuses. Eric Steinhart oferece o seguinte cenário: “Considere as deidades gregas. Elas faziam sexo e geravam bebês. Elas tinham descendentes com modificações. Uma vez que elas têm sangue divino (icor) em suas veias, elas podem ter genes divinos em seus genitais. As divindades pagãs podem evoluir”. (4)

Há diversos modos suplementares de se mostrar, lançando-se luzes sobre certas nuances inexplícitas, a proximidade entre a religião homérica e uma cosmovisão científica como a atual. Pitágoras dizia que os terremotos eram causados por reuniões de mortos no Hades (o mundo subterrâneo). (5) Trata-se de um aceno à crença homérica, na qual as almas dos mortos (sombras, vapores, simulacros, fluidos sutis desprovidos de consciência) percolavam através do solo e se depositavam em cavernas. Muito bem, por um lado, seria possível descrever a fisiologia das almas homéricas (assim como os epicuristas escreviam linhas confiantes sobre a fisiologia dos deuses); por outro lado, notamos a semelhança entre os vapores anímicos armazenados no Hades e as exalações inanimadas que, segundo Aristóteles, preenchiam cavidades subterrâneas e causavam terremotos. Transição suave entre conceitos. Além do mais, quando fala de reuniões de mortos no Hades, Pitágoras parece entender que os terremotos são um resultado não intencional das acumulações de almas. Estas, seres que, segundo Homero, carecem de consciência, agem sem pensar nas consequências de seus atos; ou, se se deseja imputar a Pitágoras uma concepção psicológica mais encorpada, não há nada que indique que as concentrações de mortos conscientes têm o objetivo de provocar terremotos. Tropel de espíritos, aglomeração de almas gasosas, ou simplesmente flatulência divina: se os deuses peidam ou emitem exalações de algum tipo, devemos sempre pensar que tais ações são intencionais? Registre-se que Aristófanes atribui ao personagem Estrepsíades a crença de que a chuva era “Zeus a mijar através de uma peneira”, (6) e a de que o trovão era similar a um peido: “[...] quando cago, produzo verdadeiros trovões, papapapax, justamente como essas nuvens”. (7) É interessante também o fato de que a proibição pitagórica de se ingerir feijões pode ter sido motivada pela crença de que os feijões, famosos por provocar flatulência ou ventos intestinais, abrigavam almas de mortos (tal era a opinião de Plínio sobre a proibição pitagórica). (8)

Vimos acima uma transição suave entre as almas gasosas de Pitágoras e as exalações subterrâneas de Aristóteles. O melhor meio de se enfrentar uma dificuldade teórica, por sinal, é um argumento gradualista (a extremidade de uma cunha penetra mais facilmente do que a parte grossa). Ora, muitos outros argumentos gradualistas podem facilitar o trânsito entre o mundo homérico e o mundo pré-socrático. Mencionarei mais um exemplo, desta vez uma peça proveniente da antiga China. Os antigos chineses sacrificavam animais aos deuses. Pediam chuvas e outras benesses. Ao mesmo tempo, acreditavam que as relações entre os homens e a natureza eram reguladas por outros princípios, os quais destoavam mais ou menos da crença nos deuses e nos espíritos. Examinando as ideias dispostas num contínuo, nós aos poucos chegaríamos a concepções que praticamente não se distinguem dos pronunciamentos da moderna ecologia.

Na antiga China, a música era usada para influenciar os seres sobrenaturais. (9) No entanto, também tinha a função de moralizar o reino animal:

Vários textos documentam famosos mestres da música cuja atuação podia afetar ou encantar os animais. Frequentemente a maestria musical exibida por esses indivíduos é apresentada por meio de uma analogia entre a técnica do artífice e a arte do governo bem-sucedido. As melodias produzidas pelo tocador de alaúde Hu Ba supostamente fizeram os peixes saírem dos lagos para ouvir; Bo Ya tocou a cítara tão bem que os cavalos olharam para ele e esqueceram a forragem. (10)

Eu menciono o exemplo da antiga China para mostrar a existência de uma transição suave entre os animais e as entidades da religião tradicional (deuses e espíritos). A música, um análogo dos sacrifícios religiosos, era dirigida a ambas as classes de seres. A influência sobre o reino animal, por sua vez, pode ser despojada dos elementos místicos e reduzir-se ao tipo de relação que ocorre em nosso mundo real. Ainda que a música não afete todos os animais (e nem produza os efeitos miraculosos relatados na literatura chinesa), é sabido que muitas espécies podem beneficiar-se do contato com alguns tipos de música. É verdade também que a música é apenas uma ínfima parte das relações que travamos com os animais. Nós somos organismos que se integram a ecossistemas complexos. Nossas ações reverberam sobre a natureza e desencadeiam efeitos estocásticos. Qual seria, assim, a diferença essencial entre nossa mentalidade científica e as crenças do religioso homérico?

Um crítico recalcitrante pode ainda insistir que o trato com animais e a enorme carga de processos estocásticos que caracteriza nosso mundo desenham-se sobre um fundo de rígidos nexos determinísticos; pode ainda insistir, consequentemente, que a religião homérica era essencialmente distinta da ciência pré-socrática. Quanto a mim, só posso responder de uma maneira: por mais que eu revire a questão, não consigo perceber a presença de uma distinção essencial. Eu deveria novamente dizer que um Isócrates concebia o comportamento divino como se se tratasse de um relógio? Eu deveria trazer à memória a lenda segundo a qual os habitantes de Königsberg (atual Kaliningrado) podiam ajustar os relógios de acordo com a rotina escrupulosamente regular de Immanuel Kant? Talvez eu pudesse acrescentar alguns fatos como os seguintes: a alternância entre dias e noites (a imagem clássica da regularidade natural) deixará de existir quando um Sol moribundo devorar a Terra; a órbita de Mercúrio é uma anomalia no âmbito das leis newtonianas (um lusus naturæ); a incidência de raios cósmicos pode provocar mutações biológicas absolutamente fortuitas; diversas pesquisas científicas procuram determinar se as orações intercessórias são eficazes.

Por fim, é preciso reconhecer que a ideia de moira diminui ainda mais a distância entre a religião homérica e os pré-socráticos (um último prego no caixão da tese da revolução milésia). O vocábulo grego moira (“quinhão”, “parte que cabe a cada um”) é geralmente traduzido como “fatalidade” ou “destino”. Quando personificado, o conceito adquire a forma da deusa Moira. A mim parece que estamos defronte a um campo de força que, tal como uma nuvem de eflúvios magnéticos, determina os destinos individuais: conforme uma passagem da Ilíada, “[...] o fado inflexível lhe fiou o destino à nascença [...]”. (11) Há também, ademais, uma ideia das mais interessantes, a de que nem mesmo os deuses podem escapar à moira: “Há um debate nos estudos homéricos sobre se Zeus é superior ao destino ou não e se o destino em Homero é equivalente à vontade de Zeus”. (12) Ora, a ideia de deuses submetidos a um controle superior e inflexível sugere uma ontologia determinística bastante enfática. Tudo se passa como se o fundo último do real fosse constituído de uma lei superior: uma meta-lei (meta-law), na terminologia do físico americano Lee Smolin. Smolin elabora um cenário que, com a exclusão das injeções pontuais de design inteligente (milagres), parece ser um símile da religião homérica. Com efeito, Smolin sustenta que as leis naturais não são imutáveis, mas evoluem por meio de um processo cósmico de seleção natural (as mutações, aliás, ocorrem no caos quântico dos buracos negros). O problema, no entanto, é que o processo evolutivo seria governado por uma meta-lei. (13)


Bibliografia

ARISTÓFANES. Clouds. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.

CÍCERO. Of the Nature of the Gods. Oxford, D. A. Talboys, 1829.

GREGORY, A. The Presocratics and the Supernatural. Londres: Bloomsbury, 2013.

______. Early Greek Philosophies of Nature. Londres: Bloomsbury, 2020.

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RIEDWEG, C. Pythagoras. Ithaca: Cornell Univerity Press, 2005.

SMOLIN, L. Time Reborn. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2013.

STERCKX, R. The Animal and the Daemon in Early China. Albany: State University of New York Press, 2002.

STEINHART, E. Believing in Dawkins. Nova York: Palgrave Macmillan, 2020.

THOMSON, J. The Wild and the Toxic. Chapel Hill: University of Carolina Press, 2019.


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) THOMSON, The Wild and the Toxic, p. 99.

(2) Ilíada, Canto V, p. 212.

(3) CÍCERO, Of the Nature of the Gods, Livro I, p. 41.

(4) Believing in Dawkins, p. 129.

(5) GREGORY, The Presocratics and the Supernatural, p. 136.

(6) Clouds, p. 31.

(7) Ibid. , p. 33.

(8) RIEDWEG, Pythagoras, p. 70-71.

(9) STERCKX, The Animal and the Daemon in Early China, p. 135.

(10) Ibid., p. 130.

(11) Canto VI, p. 658.

(12) GREGORY, Early Greek Philosophies of Nature, p. 36.

(13) SMOLIN, Time Reborn, p. 242-243.



19/04/2025

A novidade pré-socrática


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Para muitos estudiosos do pensamento antigo, o tipo particular de racionalidade introduzido pelos filósofos pré-socráticos caracterizou-se pela procura por leis naturais. Assim, Andrew Gregory: “Com os pensadores jônicos [...] vemos mundos ordenados onde há uma regularidade completa”. (1) Já em Tales de Mileto, com efeito, a ação de Posídon é substituída por um fenômeno mecânico: os terremotos ocorrem porque a Terra, que flutua no oceano como um barco, é agitada pelas águas. (2)

Gregory descreve a inconstância divina da seguinte maneira: “[...] não há nenhuma evidência de que haja alguma relação entre o nível da ira de Posídon e a quantidade ou a intensidade do tremor que ele provoca. A ira nem sempre gera um tremor. Os homens tampouco são capazes de dizer o que deixará Posídon irado”. (3)

A explicação de Tales foi a primeira expressão clara e articulada de uma moda filosófica que se implantou no próprio terreno da religião, tornando-se com o tempo um elemento indispensável das cosmovisões religiosas. Anaximandro de Mileto, possivelmente um discípulo de Tales, explicará os trovões, os relâmpagos e os ciclones por meio do movimento do ar. Acrescente-se que muitos fenômenos raros receberão a atenção dos pré-socráticos. Xenófanes explicará o fogo de santelmo; Anaxágoras, o nascimento de um carneiro unicórnio; Demócrito, a precipitação de átomos patogênicos provenientes de outros planetas. (4)

Nós teríamos aí o lineamento geral da grande novidade pré-socrática, a saber, a crítica a uma cosmovisão fundada na irregularidade das ações divinas. Teríamos? Desconsidere o fato de que os sismos, as anomalias congênitas e as quedas de meteoritos não são completamente previsíveis nem mesmo com o auxílio da tecnologia atual; desconsidere a raridade de fenômenos como os relâmpagos globulares, as chuvas de peixes e os tornados de fogo, os quais dependem de condições muito específicas (não nos furtemos a pensar em casos realmente excepcionais: um cérebro de Boltzmann – um cérebro resultante de uma reunião fortuita de partículas – é uma entidade natural, ainda que sejam necessários infinitos universos como o nosso para garantir sua ocorrência); desconsidere também a possibilidade, levada a sério por não poucos filósofos e cientistas, de que as leis da natureza não sejam imutáveis; desconsidere, enfim, um ponto concedido pelo próprio Gregory: “Em Homero e em Hesíodo há regularidades gerais na meteorologia, nos céus e na agricultura”. (5) Não obstante tudo o que foi dito, muitos veem na proposição de leis naturais a essência da novidade pré-socrática. Uma novidade, sem dúvidas, monumental!

O que poderia justificar que se fizesse grande caso de uma filosofia da natureza que mal se distingue da religião tradicional? Nem sempre com plena consciência, os intérpretes costumam desviar a atenção por meio de um red herring – uma pirotecnia, uma cortina de fumaça. Ao reduzir o naturalismo a uma novidade tão inane, eles logram obscurecer o verdadeiro núcleo do ateísmo científico. O físico americano Victor Stenger é um materialista acima de qualquer suspeita. Ele seria a última pessoa a inocentar algum aspecto da religião. Ainda assim, ele não pôde evitar de escrever frases como esta:

A inovação de Tales, que hoje nós reconhecemos como ciência pura, foi explicar os fenômenos observados com referência a forças visíveis em vez de espíritos invisíveis e imaginados – os quais eram, na época de Tales, os deuses gregos. Por exemplo, Tales explicou os terremotos por meio da hipótese de que a Terra flutua na água e é estremecida pelas ondas. (6)

Stenger foi um dos que mais contribuíram para sedimentar a ideia de que o Universo proveio do acaso. Na passagem acima, ele faz o elogio de uma novidade desimportante. Cito-o para mostrar que a tendência apontada aparece em grandes expoentes do ateísmo científico. Seja como for, a ênfase posta em um elemento irrelevante tem o condão de mascarar o núcleo teórico da controvérsia. Deveríamos esperar, então, que tal manobra não tivesse como efeito o favorecimento do hilozoísmo, do organicismo, do panteísmo, dos NOMA (non-overlapping magisteria) de Gould e de outras licenças religiosas?

Andrew Gregory, um dos mais distintos intérpretes atuais da novidade pré-socrática, destaca-se como um exemplo concreto do que acabo de dizer. Gregory atribui grande importância à proposição de leis naturais (um red herring bastante especioso); além disso, ele põe as cartas na mesa e acaba por revelar seu parti pris: o amor ao organicismo. De fato, Gregory admite não ver com bons olhos as teorias genéticas que falam de “acontecimentos singulares”. (7) Um acontecimento singular, ou único, é um fenômeno como aqueles que ocorrem na teogonia de Hesíodo (a proliferação a partir do caos primitivo dá-se uma única vez) e na Bíblia (a criação do mundo não se repete). Contudo, a atribuição de um caráter singular a um evento pode também significar que um evento é casual. Podemos deduzir, portanto, que Gregory repudia não apenas os milagres, mas também os eventos genéticos casuais (o clinâmen epicurista, a cosmogênese quântica, a origem acidental da vida e as contingências que pontuam a evolução biológica). Acresce que a leitura de Gregory permite entrever a presença constante, ainda que latente, do modelo embriológico da evolução do cosmo e das espécies. Ou nem tão latente, já que Gregory por diversas vezes transige de modo explícito com o design inteligente e com a teleologia natural.

A manobra realizada por Gregory e por Stenger (a atenção dirigida para o conceito de lei natural) exemplifica uma tendência ideológica muito difundida, a qual procura, de modo consciente ou inconsciente, imunizar algumas formas de religiosidade. Com efeito, o dispêndio de munição contra alvos inócuos é uma maneira efetiva de se salvaguardar um objeto reputado como precioso. Para documentar brevemente minha tese, menciono alguns críticos da religião que se mostraram simpáticos ao organicismo e ao hilozoísmo: Meslier (ainda que um legítimo advogado do materialismo) não se importa em confundir a ontogênese com a filogênese; Holbach é tolerante com a hipótese da eternidade das espécies e põe a filogênese sob a responsabilidade de “dados viciados”; Hume vê o hilozoísmo como uma alternativa viável ao design inteligente; Kant acredita que o argumento do desígnio é capaz de provar a existência de um arquiteto do mundo (e não a de um criador da matéria); Feuerbach abraça a teleologia imanente e o modelo embriológico da origem das espécies; Graham Oppy, aparentemente um materialista modelar, depõe em favor de uma modalidade de semiorganicismo ao argumentar que o fine-tuning poderia ser uma característica irredutível do cosmo; Gregory não pensa violentar o naturalismo quando atribui a Anaximandro um modelo filogenético calcado na ontogênese dos tricópteros (insetos alados que se desenvolvem na água).

Voltemos à avaliação da novidade pré-socrática e examinemos melhor se Gregory tem razão em realçar a inconstância dos deuses gregos. Ele formula, como vimos, o seguinte juízo: “[...] não há nenhuma evidência de que haja alguma relação entre o nível da ira de Posídon e a quantidade ou a intensidade do tremor que ele provoca. A ira nem sempre gera um tremor. Os homens tampouco são capazes de dizer o que deixará Posídon irado”. (8) O fato, porém, é que o religioso homérico tinha pleno conhecimento da existência de leis naturais (causa-me espécie, portanto, a crença de que o conceito de lei natural foi uma criação milésia). Havia na época de Agostinho um provérbio que dizia: Pluvia defit, causa Christiani (Se não chove, a causa são os cristãos). (9) A supressão dos sacrifícios tradicionais foi considerada, inclusive, a causa de uma calamidade devastadora: o saque de Roma por Alarico, rei dos visigodos, em 410. (10)

O orador ateniense Isócrates, não menos categórico, confere às ações dos deuses a precisão de um relógio: “[...] nem em seu culto e nem em suas festas [os atenienses da época de Sólon] portavam-se de modo irregular ou desordenado”; consequentemente, “[...] as coisas que se recebem das mãos dos deuses não lhes vinham com perturbações e fora do tempo, mas muito oportunamente, tanto no cultivo da terra como na colheita dos frutos”. (11)

Digno de nota é o fato de que a compreensão nomológica expressa por Isócrates chegou a adentrar a esfera das decisões jurídicas. Em 399 AEC, um certo Nicômaco foi acusado de adulterar o calendário ateniense de sacrifícios sancionados pelo Estado. Nas palavras do promotor,

Não devemos, senhores do júri, ser instruídos acerca da piedade por Nicômaco, mas olhar para o passado. Nossos ancestrais, que realizavam os sacrifícios ordenados nos antigos pilares, legaram a nós a maior e mais próspera cidade da Grécia; cabe a nós realizar os mesmos sacrifícios de antanho, por não outra razão além da boa fortuna que resultava desses ritos. (12)

Por meio desses e de outros testemunhos que poderiam ser multiplicados ad libitum, julgo que o conceito de lei natural está posto: no âmbito conceitual já constituído pelo religioso homérico, a ideia de um cosmo perfeitamente regulado é possível. Pouco importa se, no frigir dos ovos, os nexos regulares configurem-se como ilhas em meio a um oceano de incertezas – jamais a filosofia e a ciência posteriores edificarão uma imagem de mundo isenta de ruídos estocásticos. E por falar em ilhas de processos regulares, a metáfora revela-se mais apta do que parece à primeira vista. O que seria o planeta Terra, afinal, a não ser uma ilha no meio do cosmo? Inúmeros processos regulares são exclusivos de nosso planeta (as leis exclusivas da biologia, com efeito, não existem fora da biosfera – uma proposição tautológica). O mais importante, porém, é notar que as leis exclusivamente terrestres tiveram uma data de nascimento e terão uma data de morte: é o caso, por exemplo, do ciclo hidrológico, um processo regular que passou a existir há cerca de 3,8 bilhões de anos, quando o resfriamento da superfície da Terra permitiu a existência de água líquida.

Muitos diriam que o ciclo hidrológico não é uma lei da natureza em sentido estrito. Mas o que ganharíamos, no presente contexto, com tamanha precisão técnica? O único ponto relevante para meu argumento é a semelhança que existe entre um fenômeno como o ciclo hidrológico e os processos regulares concebidos pelos pré-socráticos. Esses filósofos sentiam-se em casa com um processo como o ciclo hidrológico. Vejamos a seguinte passagem do tratado hipocrático Ares, águas e lugares, uma obra que finca firmemente os pés no solo da ciência pré-socrática:

Eu tratarei agora de falar sobre a água da chuva e sobre a água da neve. As águas da chuva são as mais leves, doces, finas e claras. A princípio, o Sol eleva e puxa para cima a parte mais fina e leve da água, como está provado pela formação do sal. [...] Agora, enquanto tal parte está espalhada e rarefeita, ela vagueia pelos ares, mas tão logo se ajunta em algum lugar e é comprimida por ventos súbitos e contrários, então rebenta sempre que uma maior compressão ocorre. (13)

O ciclo hidrológico veio a ser e pode a qualquer momento deixar de existir. Uma flutuação quântica poderia, aliás, obliterar não apenas a Terra, mas o próprio Universo. De acordo com alguns modelos, uma flutuação quântica é capaz de gerar uma bolha que se propaga pelo Universo como um tsunâmi de proporções cósmicas. Num piscar de olhos, um clinâmen quântico amplificado engoliria nosso planeta. Muito me admira, assim, que alguns possam ver na religião grega tradicional a antítese da filosofia pré-socrática. Ou, dito de outra forma, parece evidente que nosso sistema de leis naturais não é menos volúvel do que o relógio suíço da teologia de Isócrates.

Não posso deixar de lembrar o profundo efeito que teve em mim a leitura de um texto do filósofo David Corner, Os milagres e o desafio da apologética. Evidência de que um acervo considerável de leituras adjacentes e de conhecimentos científicos é muitas vezes indispensável para a apreciação justa de uma filosofia. Corner argumenta que um milagre seria dificilmente distinguível de um lusus naturæ: uma brincadeira da natureza, ou seja, uma ocorrência espontânea. (14) Há lusus naturæ de diversos tipos, desde as anomalias congênitas mais desenxabidas até os cenários cósmicos mais espetaculares. Uma chuva de peixes decorre de uma conjunção bastante peculiar de fatores; os eventos quânticos individuais são indeterminados e operam na raiz das mutações biológicas (o que é a biosfera senão uma coleção de acidentes quânticos congelados?); a singularidade do big bang, no dizer de Quentin Smith, foi um estado imprevisível e anômico (lawless); (15) um cérebro de Boltzmann (ou qualquer estrutura dotada de complexidade semelhante) pode eclodir como uma flutuação quântica na vastidão do espaço (ou do tempo); uma flutuação espontânea do campo de Higgs pode arrastar o Universo para um abismo; as leis e as constantes físicas não se mantêm incólumes no núcleo caótico de um buraco negro. Repare que as condições físicas extremas do big bang e dos buracos negros transformam minha crítica a Gregory num overkill. Um substrato que flutua de modo caótico é a antítese perfeita de um substrato caracterizado pela regularidade. O ponto a ser realçado, com efeito, é o fato de que o mundo poderia ser crivado de anomalias que resultam de uma rotura real das leis da natureza (o mundo poderia ser eminentemente poroso, como se o caos do big bang fosse seu estado definitivo).

Agora, se os milagres não são apenas rupturas do tecido causal, mas injeções pontuais de design inteligente, o problema reduz-se a uma avaliação da hipótese básica do design inteligente (uma hipótese que sabidamente diz respeito às origens do cosmo e das espécies). Consequentemente, não consigo perceber a relevância da discussão sobre os milagres. Em um Universo quebradiço e repleto de estruturas orgânicas produzidas por um designer, os milagres equivaleriam ao nascimento de bebês (uma redundância); em contrapartida, em um mundo originado pelo caos, os milagres equivaleriam a um enclave geocêntrico em um universo infestado de planetas extrassolares.

É preciso notar, ademais, que inúmeros fenômenos são imprevisíveis até mesmo na ausência de violações reais do princípio da causalidade. Um fato, aliás, cediço, se pensarmos que as dificuldades práticas de previsão jamais estiveram atreladas à incerteza quântica (um luxo micrológico que afeta apenas as pretensões metafísicas do demônio de Laplace). O matemático britânico Marcus du Sautoy desconcerta os pedantes da metafísica com um exemplo prosaico: “Se eu pudesse prever a queda de dados, todos os jogos que dependem deles jamais teriam sido populares”. (16)

Alguns talvez pensem que faltava ao religioso homérico um refinamento na compreensão da essência de uma lei natural. A impressão é equivocada. Mais uma vez, digo que algumas clareiras de entendimento se abriram quando pude confrontar a filosofia grega com os conhecimentos que obtive pela leitura de tópicos adjacentes (sobretudo, ao frequentar a literatura científica contemporânea). Refiro-me aqui à noção de spandrel, cunhada pelos biólogos americanos Stephen Jay Gould e Richard Lewontin no artigo The Spandrels of San Marco and the Panglossian Paradigm (1979). Um spandrel é um espaço que, na arquitetura, constitui-se entre o topo de um arco e uma moldura retangular (pensemos nos quatro espaços grosseiramente triangulares que aparecem quando um círculo é inserido num quadrado). Com base no conceito de spandrel, Gould e Lewontin procuraram chamar a atenção para as características anatômicas e comportamentais que se formam como subprodutos de adaptações. Nosso apetite inato por gordura e açúcar, por exemplo, não é desativado nas atuais condições de abundância nutricional. Em outras palavras, nosso apetite não faz uma distinção entre nossa sociedade industrializada e as savanas do Pleistoceno. O que importa para a presente discussão é o fato de que o conceito de spandrel veicula de forma abstrata a consciência de que um caráter proteiforme (uma sensibilidade à variação de circunstâncias) é incompatível com a essência de uma lei natural. “Eu só faço os furos, quem mata é Deus”: nesta frase comparece de maneira jocosa o caráter proteiforme que se opõe à essência de uma lei natural.

Depois de absorver o conceito de spandrel, pude questionar com mais comodidade a natureza da inovação atribuída aos milésios. Com efeito, parece-me que a intuição mais ou menos clara da ocorrência de spandrels é um sinal de que a essência das leis naturais é compreendida – mais ainda, parece-me que a intuição mais ou menos clara da ocorrência de spandrels já aparece no âmbito da religião homérica. Um bom exemplo é o episódio do logro em Mecone, narrado por Hesíodo. No mito, Prometeu divide as partes de um boi em duas porções, tentando enganar Zeus. Em uma, esconde carne e entranhas ricas em gordura sob a pele do ventre bovino; na outra, esconde ossos sob uma capa apetitosa de gordura. A visão divina não perpassaria, segundo Prometeu, os envoltórios que recobriam os alimentos nutritivos e os ossos indigestos. (17)

A visão de Zeus, constrangida pelas leis que regulam a percepção, é um análogo de fenômenos como a masturbação, o sexo anal e o coito interrompido. Assim como os olhos divinos não distinguem entre uma superfície carnosa e um saco de ossos, o pênis que abandona precocemente uma vagina não distingue entre o calor de uma mão (ou de uma boca) e as doçuras de seu claustro natural. Ora, uma série de evidências adicionais traria um estresse intolerável à hipótese de que o religioso homérico ignorava a existência de spandrels. Ele sabia que os terremotos não atingiam os transgressores como mísseis teleguiados; ele conhecia, obviamente, o funcionamento de armadilhas e o fato de que o pênis muitas vezes prefere aninhar-se na cavidade anal. As mariposas são atraídas por chamas assassinas: este talvez seja o exemplo clássico de spandrel. Plínio descreve uma armadilha para atrair as mariposas que atacam colmeias: “[...] tochas são acesas diante das colmeias, as mariposas então se precipitam em enxames em direção à chama”. (18) O uso de métodos anticoncepcionais na Antiguidade também indica a consciência de spandrels: as mulheres gregas inseriam na vagina óleo de cedro, lã, unguentos e resinas. (19)

Nós deveríamos concluir, então, que os milésios não foram responsáveis por uma novidade substancial? Tal é meu parecer. A estrutura abstrata da religião tradicional é mantida. Leis naturais aparecem entremeadas com processos estocásticos. A substituição de deuses por objetos inanimados (rochas, nuvens, água) não se configura como uma revolução teórica, mas como a expressão de uma curiosidade supérflua – assim como, em Newton, a elucidação da causa da gravidade não resultaria em previsões diferentes. Eu ofereço a seguinte analogia: a dissecação da causa de um terremoto (fenômeno que, segundo Tales, reduzia-se ao choque entre corpos) equivaleria à dissecação dos corpos divinos, sem que uma mudança fundamental fosse introduzida no discurso filosófico. Ainda assim, embora eu não esteja inclinado a admitir uma revolução teórica, quer-me parecer que não seria justo reduzir a contribuição milésia a uma mudança cosmética ou a uma sofisticação que não afeta a estrutura da religião homérica. Estou disposto, portanto, a conceder que os milésios foram responsáveis pela introdução de um elemento significativo, mas mesmo assim sou obrigado a nuançar a importância do elemento que acolho como inovador.

A novidade não está, conforme procurei mostrar, na mera proposição de leis naturais, mas em um fato que raramente recebe a atenção dos intérpretes: os milésios opuseram-se à teleologia antropocêntrica que dava o tom à religião popular. Um sem-número de fenômenos deixa de ocorrer em função do homem. Os terremotos, antes instrumentos especiais de punição, agora atingem regiões desertas. (Somente agora? Repare na inusitada construção dessa frase; na verdade, os terremotos sempre afetaram regiões desertas, mas agora o olhar do filósofo pode perceber o que antes permanecia indistinto na orla da consciência.) Outrossim, as doenças e as intempéries passam a acometer os animais inocentes e até as plantas, sem que os interesses econômicos dos homens estejam em jogo.

Que magnífico tesouro filosófico encontramos na análise dos animais! A carne animal, com efeito, permite marginalizar a fenomenologia que muitos fazem girar em torno do ser humano – como se nossos irmãos irracionais (ou semirracionais) brotassem de nossos flancos à maneira de expansões que tornam impossível uma análise focal (símile do experimento da fenda dupla: uma partícula pontual converte-se numa nuvem difusa). Assim, como epítome da tendência filosófica estabelecida pelos milésios, considero incontornável uma passagem de Sobre a adivinhação por meio dos sonhos, uma obra de Aristóteles. Em determinado momento, Aristóteles dirige seu olhar para as margens da realidade humana: “Uma vez que certos animais inferiores também sonham, pode-se concluir que os sonhos não são enviados por Deus”. (20)

O argumento de Aristóteles – a sempre eficaz contemplação da periferia do mundo humano – pode ser considerado como a súmula daquilo que o pensamento milésio tem de realmente inovador. A inclusão de animais, de regiões desabitadas e de outros fatores excêntricos, aliás, faz-me lembrar que o estilo milésio de análise permite-nos criticar, entre outras, a crença daqueles que viram na AIDS uma punição divina aos homossexuais. Como deveríamos saber, as lésbicas não costumam contrair AIDS durante os atos sexuais.

Julgo oportuno citar a imagem sintética que Stenger elabora de uma cosmovisão aparentada à da religião homérica – imagem límpida, inteiriça, livre das perturbações usuais que impedem a previsão dos fenômenos:

Os eventos naturais poderiam obedecer a alguma lei moral, em vez de leis matemáticas moralmente neutras. Por exemplo, os relâmpagos poderiam atingir geralmente os perversos; os indivíduos que se comportam mal poderiam cair doentes com mais frequência; as freiras sempre sobreviveriam a desastres aéreos. (21)

Ao que tudo indica, Stenger refere-se à estrutura básica de uma lei como aquela que preside o desenvolvimento embrionário. Um zigoto transforma-se num indivíduo dotado de alta especificidade: seria difícil imaginarmos uma representação mais perfeita do sistema determinista. Pais, médicos, criadores e cientistas esperam, com toda razão, um resultado certo (a aposta é vantajosa). Porém, como todos sabemos, diversos bugs podem insinuar-se nas entranhas do processo. “As anomalias congênitas estão presentes em cerca de 3% dos recém-nascidos e são extremamente variáveis quanto aos tipos e ao seu mecanismo causal, mas todas surgem de um transtorno no desenvolvimento ontogenético”. (22) Além disso, Stenger assinala um tipo particular de lei da natureza: a lei moral. E a religião homérica, evidentemente, insuflava o cosmo com uma profusão de leis morais.

Cabe aqui um questionamento que pode parecer bizarro: nosso cosmo seria inteiramente destituído de leis morais? A depender da resposta, a novidade pré-socrática sofreria uma redução ainda mais severa. Ora, meu sentimento, por mais que eu não deseje menosprezar a crítica à teleologia antropocêntrica, é o de que os fenômenos biológicos são inseparáveis de leis morais. Os organismos não são massas amorfas ou coloides desorganizados. Trabalha-os internamente um esforço de autopreservação: trata-se do conatus de Spinoza ou, se se preferir, da homeostase. O admirável é que tal esforço manifesta-se como uma sagacidade orgânica extremamente refinada. Nós poderíamos pensar, por exemplo, nos artifícios implementados pelo sistema imunológico – os exércitos de células especializadas que o organismo envia para debelar infecções. Em muitos casos, a inteligência inconsciente dos processos fisiológicos atinge um nível inacreditável de sutileza, como quando, na transcrição do DNA, um sistema de sinalizadores moleculares indica as proteínas que devem ou não ser copiadas. Nossos computadores não agem com maior competência. (Recentemente pude encantar-me com a perspicácia de meu celular, no momento em que seu conatus interpretou o superaquecimento como um motivo razoável de desligamento automático.)

O domínio individual do conatus parece encarnar um conjunto de valores e de leis morais. Estaria garantida dentro de seus limites, portanto, a vigência de um esquema ontológico análogo ao da religião homérica. Um microcosmo. A homeostase de um indivíduo é sua divindade intrínseca, seu daimon privativo, seu lar (os lares romanos eram deuses que protegiam as casas e viviam próximos a lareiras). De acordo com William Harvey, o descobridor da circulação sanguínea, o coração é a “divindade doméstica que, ao exercer sua função, nutre, acalenta, estimula todo o corpo, sendo realmente a fundação da vida, a fonte de toda ação”. (23)

Restaria saber se, de algum modo, os limites individuais do conatus poderiam ser ampliados; em outras palavras, se a natureza ou um ecossistema particular poderia ser encarado como um conatus estendido. À primeira vista, parece não haver dificuldade. Nossos ouvidos modernos estão acostumados a frases sobre as consequências das ações humanas sobre o ambiente. Em Homero, a fumaça dos sacrifícios subia aos céus e excitava as narinas dos deuses; hoje, os gases resultantes da queima de combustíveis fósseis acumulam-se na atmosfera e ocasionam graves perturbações ecológicas.

Os indivíduos que se comportam mal adoecem com mais frequência? As freiras sempre sobrevivem a desastres aéreos? Não, mas a má alimentação e o desmatamento atentam contra a vida humana. Assim, estaríamos muito distantes da verdade se disséssemos que a hipótese de Gaia (desenvolvida por James Lovelock) atualiza os elementos essenciais da religião grega tradicional? Sob uma superfície de variações cosméticas, uma profunda semelhança.

O melhor meio de se enfrentar uma dificuldade teórica é um argumento gradualista (a extremidade de uma cunha penetra com mais facilidade do que a parte grossa). Os antigos chineses sacrificavam animais aos deuses. Pediam chuvas e outras benesses. Ao mesmo tempo, acreditavam que as relações entre os homens e a natureza eram reguladas por outros princípios, os quais destoavam mais ou menos da crença nos deuses e nos espíritos. Examinando as ideias dispostas num contínuo, nós aos poucos chegaríamos a concepções que praticamente não se distinguem dos pronunciamentos da moderna ecologia.

Na antiga China, a música era usada para influenciar os seres sobrenaturais. (24) No entanto, também tinha a função de moralizar o reino animal:

Vários textos documentam famosos mestres da música cuja atuação podia afetar ou encantar os animais. Frequentemente a maestria musical exibida por esses indivíduos é apresentada por meio de uma analogia entre a técnica do artífice e a arte do governo bem-sucedido. As melodias produzidas pelo tocador de alaúde Hu Ba supostamente fizeram os peixes saírem dos lagos para ouvir; Bo Ya tocou a cítara tão bem que os cavalos olharam para ele e esqueceram a forragem. (25)

Eu menciono o exemplo da antiga China para mostrar a existência de uma transição suave entre os animais e as entidades da religião tradicional (deuses e espíritos). A música, um análogo dos sacrifícios religiosos, era dirigida a ambas as classes de seres. A influência sobre o reino animal, por sua vez, pode ser despojada dos elementos místicos e reduzir-se ao tipo de relação que ocorre em nosso mundo real. Ainda que a música não afete todos os animais (e nem produza os efeitos miraculosos relatados na literatura chinesa), é sabido que muitas espécies podem beneficiar-se do contato com alguns tipos de música. É verdade também que a música é apenas uma ínfima parte das relações que travamos com os animais. Nós somos organismos integrados a ecossistemas complexos. Nossas ações reverberam sobre a natureza e desencadeiam efeitos estocásticos. Qual seria, assim, a diferença essencial entre nossa mentalidade científica e as crenças do religioso homérico?


Bibliografia

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STERCKX, R. The Animal and the Daemon in Early China. Albany: State University of New York Press, 2002.


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) Early Greek Philosophies of Nature, p. 1.

(2) SÊNECA, Natural Questions, p. 93.

(3) Early Greek Philosophies of Nature, p. 50.

(4) PLUTARCO apud GREGORY, The Presocratics and the Supernatural, p. 187.

(5) Early Greek Philosophies of Nature, p. 1.

(6) God and The Folly of Faith, p. 53.

(7) The Presocratics and the Supernatural, p. 63.

(8) Early Greek Philosophies of Nature, p. 50.

(9) The City of God, Livro II, cap. 3, p. 50.

(10) Ibid., Livro I, cap. I, p. 2-3.

(11) Areopagítica, p. 221.

(12) Apud MUNN, The School of History, p. 276.

(13) Airs Waters Places, p. 91-93.

(14) Miracles and the Challenge of Apologetics, p. 51-52.

(15) Theism, Atheism, and Big Bang Cosmology, p. 201.

(16) What We Cannot Know, p. 21.

(17) Teogonia, p. 69-71.

(18) Natural History, vol. IV, Livro XXI, cap. 47, p. 344.

(19) CARRICK, Medical Ethics in the Ancient World, p. 119.

(20) Apud GREGORY, The Presocratics and the Supernatural, p. 33.

(21) God: the Failed Hypothesis, p. 233.

(22) BORGES-OSÓRIO & ROBINSON, Genética humana, p. 206.

(23) On the Motion of the Heart and Blood in Animals, p. 49.

(24) STERCKX, The Animal and the Daemon in Early China, p. 135.

(25) Ibid., p. 130.