30/04/2025

A novidade pré-socrática (2)


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A filosofia poderia avançar e adquirir um grau elevado de sofisticação, ainda que não substituísse os deuses tradicionais por objetos inanimados. (Devemos notar, de qualquer modo, que a substância originária dos milésios não era um corpo desprovido de sensações e de pensamentos; dentro dela havia, contudo, regiões governadas por princípios mecânicos, assim como, em nossos corpos, a formação de cálculos, calcificações e abscessos obedece à causalidade mecânica mais crassa.) A hipótese de Gaia, mais próxima de nossa percepção moderna, estabelece que o superorganismo divino é composto de órgãos: “À medida que Lovelock continuou a refinar Gaia através das décadas de 1970 e 1980, ele descreveu uma anatomia terrena em que certos órgãos (florestas tropicais, desertos e mares costeiros) tinham maior importância fisiológica do que outros”. (1)

É verdade que a filosofia pré-socrática é mais sofisticada do que a filosofia homérica, mas o que impediria que o aprumo científico fosse obtido com a conservação dos deuses tradicionais? O estudo da fisiologia divina pode ser, de fato, tão sofisticado e curioso quanto o desnudamento de processos mecânicos. Em Homero já encontramos algumas informações instigantes sobre o icor, um líquido que flui pelas veias dos deuses e procede do metabolismo de néctar e ambrosia. (2) Antes que se diga que as ideias de Homero carecem de sofisticação filosófica, é preciso lembrar que os epicuristas, mentes que se ataviavam com a excelência da cultura científica, meteram-se em desavergonhadas especulações sobre a fisiologia de uma tribo de deuses antropomórficos. De acordo com o epicurista Velleius, “Os deuses têm uma certa figura que nada tem de concreta, de sólida, de expressamente substancial, de protuberante; mas é pura, lisa e transparente”. (3) Ora, a exploração da fisiologia divina poderia abarcar até mesmo a evolução dos deuses. Eric Steinhart oferece o seguinte cenário: “Considere as deidades gregas. Elas faziam sexo e geravam bebês. Elas tinham descendentes com modificações. Uma vez que elas têm sangue divino (icor) em suas veias, elas podem ter genes divinos em seus genitais. As divindades pagãs podem evoluir”. (4)

Há diversos modos suplementares de se mostrar, lançando-se luzes sobre certas nuances inexplícitas, a proximidade entre a religião homérica e uma cosmovisão científica como a atual. Pitágoras dizia que os terremotos eram causados por reuniões de mortos no Hades (o mundo subterrâneo). (5) Trata-se de um aceno à crença homérica, na qual as almas dos mortos (sombras, vapores, simulacros, fluidos sutis desprovidos de consciência) percolavam através do solo e se depositavam em cavernas. Muito bem, por um lado, seria possível descrever a fisiologia das almas homéricas (assim como os epicuristas escreviam linhas confiantes sobre a fisiologia dos deuses); por outro lado, notamos a semelhança entre os vapores anímicos armazenados no Hades e as exalações inanimadas que, segundo Aristóteles, preenchiam cavidades subterrâneas e causavam terremotos. Transição suave entre conceitos. Além do mais, quando fala de reuniões de mortos no Hades, Pitágoras parece entender que os terremotos são um resultado não intencional das acumulações de almas. Estas, seres que, segundo Homero, carecem de consciência, agem sem pensar nas consequências de seus atos; ou, se se deseja imputar a Pitágoras uma concepção psicológica mais encorpada, não há nada que indique que as concentrações de mortos conscientes têm o objetivo de provocar terremotos. Tropel de espíritos, aglomeração de almas gasosas, ou simplesmente flatulência divina: se os deuses peidam ou emitem exalações de algum tipo, devemos sempre pensar que tais ações são intencionais? Registre-se que Aristófanes atribui ao personagem Estrepsíades a crença de que a chuva era “Zeus a mijar através de uma peneira”, (6) e a de que o trovão era similar a um peido: “[...] quando cago, produzo verdadeiros trovões, papapapax, justamente como essas nuvens”. (7) É interessante também o fato de que a proibição pitagórica de se ingerir feijões pode ter sido motivada pela crença de que os feijões, famosos por provocar flatulência ou ventos intestinais, abrigavam almas de mortos (tal era a opinião de Plínio sobre a proibição pitagórica). (8)

Vimos acima uma transição suave entre as almas gasosas de Pitágoras e as exalações subterrâneas de Aristóteles. O melhor meio de se enfrentar uma dificuldade teórica, por sinal, é um argumento gradualista (a extremidade de uma cunha penetra mais facilmente do que a parte grossa). Ora, muitos outros argumentos gradualistas podem facilitar o trânsito entre o mundo homérico e o mundo pré-socrático. Mencionarei mais um exemplo, desta vez uma peça proveniente da antiga China. Os antigos chineses sacrificavam animais aos deuses. Pediam chuvas e outras benesses. Ao mesmo tempo, acreditavam que as relações entre os homens e a natureza eram reguladas por outros princípios, os quais destoavam mais ou menos da crença nos deuses e nos espíritos. Examinando as ideias dispostas num contínuo, nós aos poucos chegaríamos a concepções que praticamente não se distinguem dos pronunciamentos da moderna ecologia.

Na antiga China, a música era usada para influenciar os seres sobrenaturais. (9) No entanto, também tinha a função de moralizar o reino animal:

Vários textos documentam famosos mestres da música cuja atuação podia afetar ou encantar os animais. Frequentemente a maestria musical exibida por esses indivíduos é apresentada por meio de uma analogia entre a técnica do artífice e a arte do governo bem-sucedido. As melodias produzidas pelo tocador de alaúde Hu Ba supostamente fizeram os peixes saírem dos lagos para ouvir; Bo Ya tocou a cítara tão bem que os cavalos olharam para ele e esqueceram a forragem. (10)

Eu menciono o exemplo da antiga China para mostrar a existência de uma transição suave entre os animais e as entidades da religião tradicional (deuses e espíritos). A música, um análogo dos sacrifícios religiosos, era dirigida a ambas as classes de seres. A influência sobre o reino animal, por sua vez, pode ser despojada dos elementos místicos e reduzir-se ao tipo de relação que ocorre em nosso mundo real. Ainda que a música não afete todos os animais (e nem produza os efeitos miraculosos relatados na literatura chinesa), é sabido que muitas espécies podem beneficiar-se do contato com alguns tipos de música. É verdade também que a música é apenas uma ínfima parte das relações que travamos com os animais. Nós somos organismos que se integram a ecossistemas complexos. Nossas ações reverberam sobre a natureza e desencadeiam efeitos estocásticos. Qual seria, assim, a diferença essencial entre nossa mentalidade científica e as crenças do religioso homérico?

Um crítico recalcitrante pode ainda insistir que o trato com animais e a enorme carga de processos estocásticos que caracteriza nosso mundo desenham-se sobre um fundo de rígidos nexos determinísticos; pode ainda insistir, consequentemente, que a religião homérica era essencialmente distinta da ciência pré-socrática. Quanto a mim, só posso responder de uma maneira: por mais que eu revire a questão, não consigo perceber a presença de uma distinção essencial. Eu deveria novamente dizer que um Isócrates concebia o comportamento divino como se se tratasse de um relógio? Eu deveria trazer à memória a lenda segundo a qual os habitantes de Königsberg (atual Kaliningrado) podiam ajustar os relógios de acordo com a rotina escrupulosamente regular de Immanuel Kant? Talvez eu pudesse acrescentar alguns fatos como os seguintes: a alternância entre dias e noites (a imagem clássica da regularidade natural) deixará de existir quando um Sol moribundo devorar a Terra; a órbita de Mercúrio é uma anomalia no âmbito das leis newtonianas (um lusus naturæ); a incidência de raios cósmicos pode provocar mutações biológicas absolutamente fortuitas; diversas pesquisas científicas procuram determinar se as orações intercessórias são eficazes.

Por fim, é preciso reconhecer que a ideia de moira diminui ainda mais a distância entre a religião homérica e os pré-socráticos (um último prego no caixão da tese da revolução milésia). O vocábulo grego moira (“quinhão”, “parte que cabe a cada um”) é geralmente traduzido como “fatalidade” ou “destino”. Quando personificado, o conceito adquire a forma da deusa Moira. A mim parece que estamos defronte a um campo de força que, tal como uma nuvem de eflúvios magnéticos, determina os destinos individuais: conforme uma passagem da Ilíada, “[...] o fado inflexível lhe fiou o destino à nascença [...]”. (11) Há também, ademais, uma ideia das mais interessantes, a de que nem mesmo os deuses podem escapar à moira: “Há um debate nos estudos homéricos sobre se Zeus é superior ao destino ou não e se o destino em Homero é equivalente à vontade de Zeus”. (12) Ora, a ideia de deuses submetidos a um controle superior e inflexível sugere uma ontologia determinística bastante enfática. Tudo se passa como se o fundo último do real fosse constituído de uma lei superior: uma meta-lei (meta-law), na terminologia do físico americano Lee Smolin. Smolin elabora um cenário que, com a exclusão das injeções pontuais de design inteligente (milagres), parece ser um símile da religião homérica. Com efeito, Smolin sustenta que as leis naturais não são imutáveis, mas evoluem por meio de um processo cósmico de seleção natural (as mutações, aliás, ocorrem no caos quântico dos buracos negros). O problema, no entanto, é que o processo evolutivo seria governado por uma meta-lei. (13)


Bibliografia

ARISTÓFANES. Clouds. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.

CÍCERO. Of the Nature of the Gods. Oxford, D. A. Talboys, 1829.

GREGORY, A. The Presocratics and the Supernatural. Londres: Bloomsbury, 2013.

______. Early Greek Philosophies of Nature. Londres: Bloomsbury, 2020.

HOMERO. Ilíada. São Paulo: Penguin, 2013.

RIEDWEG, C. Pythagoras. Ithaca: Cornell Univerity Press, 2005.

SMOLIN, L. Time Reborn. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2013.

STERCKX, R. The Animal and the Daemon in Early China. Albany: State University of New York Press, 2002.

STEINHART, E. Believing in Dawkins. Nova York: Palgrave Macmillan, 2020.

THOMSON, J. The Wild and the Toxic. Chapel Hill: University of Carolina Press, 2019.


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) THOMSON, The Wild and the Toxic, p. 99.

(2) Ilíada, Canto V, p. 212.

(3) CÍCERO, Of the Nature of the Gods, Livro I, p. 41.

(4) Believing in Dawkins, p. 129.

(5) GREGORY, The Presocratics and the Supernatural, p. 136.

(6) Clouds, p. 31.

(7) Ibid. , p. 33.

(8) RIEDWEG, Pythagoras, p. 70-71.

(9) STERCKX, The Animal and the Daemon in Early China, p. 135.

(10) Ibid., p. 130.

(11) Canto VI, p. 658.

(12) GREGORY, Early Greek Philosophies of Nature, p. 36.

(13) SMOLIN, Time Reborn, p. 242-243.



19/04/2025

A novidade pré-socrática


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Para muitos estudiosos do pensamento antigo, o tipo particular de racionalidade introduzido pelos filósofos pré-socráticos caracterizou-se pela procura por leis naturais. Assim, Andrew Gregory: “Com os pensadores jônicos [...] vemos mundos ordenados onde há uma regularidade completa”. (1) Já em Tales de Mileto, com efeito, a ação de Posídon é substituída por um fenômeno mecânico: os terremotos ocorrem porque a Terra, que flutua no oceano como um barco, é agitada pelas águas. (2)

Gregory descreve a inconstância divina da seguinte maneira: “[...] não há nenhuma evidência de que haja alguma relação entre o nível da ira de Posídon e a quantidade ou a intensidade do tremor que ele provoca. A ira nem sempre gera um tremor. Os homens tampouco são capazes de dizer o que deixará Posídon irado”. (3)

A explicação de Tales foi a primeira expressão clara e articulada de uma moda filosófica que se implantou no próprio terreno da religião, tornando-se com o tempo um elemento indispensável das cosmovisões religiosas. Anaximandro de Mileto, possivelmente um discípulo de Tales, explicará os trovões, os relâmpagos e os ciclones por meio do movimento do ar. Acrescente-se que muitos fenômenos raros receberão a atenção dos pré-socráticos. Xenófanes explicará o fogo de santelmo; Anaxágoras, o nascimento de um carneiro unicórnio; Demócrito, a precipitação de átomos patogênicos provenientes de outros planetas. (4)

Nós teríamos aí o lineamento geral da grande novidade pré-socrática, a saber, a crítica a uma cosmovisão fundada na irregularidade das ações divinas. Teríamos? Desconsidere o fato de que os sismos, as anomalias congênitas e as quedas de meteoritos não são completamente previsíveis nem mesmo com o auxílio da tecnologia atual; desconsidere a raridade de fenômenos como os relâmpagos globulares, as chuvas de peixes e os tornados de fogo, os quais dependem de condições muito específicas (não nos furtemos a pensar em casos realmente excepcionais: um cérebro de Boltzmann – um cérebro resultante de uma reunião fortuita de partículas – é uma entidade natural, ainda que sejam necessários infinitos universos como o nosso para garantir sua ocorrência); desconsidere também a possibilidade, levada a sério por não poucos filósofos e cientistas, de que as leis da natureza não sejam imutáveis; desconsidere, enfim, um ponto concedido pelo próprio Gregory: “Em Homero e em Hesíodo há regularidades gerais na meteorologia, nos céus e na agricultura”. (5) Não obstante tudo o que foi dito, muitos veem na proposição de leis naturais a essência da novidade pré-socrática. Uma novidade, sem dúvidas, monumental!

O que poderia justificar que se fizesse grande caso de uma filosofia da natureza que mal se distingue da religião tradicional? Nem sempre com plena consciência, os intérpretes costumam desviar a atenção por meio de um red herring – uma pirotecnia, uma cortina de fumaça. Ao reduzir o naturalismo a uma novidade tão inane, eles logram obscurecer o verdadeiro núcleo do ateísmo científico. O físico americano Victor Stenger é um materialista acima de qualquer suspeita. Ele seria a última pessoa a inocentar algum aspecto da religião. Ainda assim, ele não pôde evitar de escrever frases como esta:

A inovação de Tales, que hoje nós reconhecemos como ciência pura, foi explicar os fenômenos observados com referência a forças visíveis em vez de espíritos invisíveis e imaginados – os quais eram, na época de Tales, os deuses gregos. Por exemplo, Tales explicou os terremotos por meio da hipótese de que a Terra flutua na água e é estremecida pelas ondas. (6)

Stenger foi um dos que mais contribuíram para sedimentar a ideia de que o Universo proveio do acaso. Na passagem acima, ele faz o elogio de uma novidade desimportante. Cito-o para mostrar que a tendência apontada aparece em grandes expoentes do ateísmo científico. Seja como for, a ênfase posta em um elemento irrelevante tem o condão de mascarar o núcleo teórico da controvérsia. Deveríamos esperar, então, que tal manobra não tivesse como efeito o favorecimento do hilozoísmo, do organicismo, do panteísmo, dos NOMA (non-overlapping magisteria) de Gould e de outras licenças religiosas?

Andrew Gregory, um dos mais distintos intérpretes atuais da novidade pré-socrática, destaca-se como um exemplo concreto do que acabo de dizer. Gregory atribui grande importância à proposição de leis naturais (um red herring bastante especioso); além disso, ele põe as cartas na mesa e acaba por revelar seu parti pris: o amor ao organicismo. De fato, Gregory admite não ver com bons olhos as teorias genéticas que falam de “acontecimentos singulares”. (7) Um acontecimento singular, ou único, é um fenômeno como aqueles que ocorrem na teogonia de Hesíodo (a proliferação a partir do caos primitivo dá-se uma única vez) e na Bíblia (a criação do mundo não se repete). Contudo, a atribuição de um caráter singular a um evento pode também significar que um evento é casual. Podemos deduzir, portanto, que Gregory repudia não apenas os milagres, mas também os eventos genéticos casuais (o clinâmen epicurista, a cosmogênese quântica, a origem acidental da vida e as contingências que pontuam a evolução biológica). Acresce que a leitura de Gregory permite entrever a presença constante, ainda que latente, do modelo embriológico da evolução do cosmo e das espécies. Ou nem tão latente, já que Gregory por diversas vezes transige de modo explícito com o design inteligente e com a teleologia natural.

A manobra realizada por Gregory e por Stenger (a atenção dirigida para o conceito de lei natural) exemplifica uma tendência ideológica muito difundida, a qual procura, de modo consciente ou inconsciente, imunizar algumas formas de religiosidade. Com efeito, o dispêndio de munição contra alvos inócuos é uma maneira efetiva de se salvaguardar um objeto reputado como precioso. Para documentar brevemente minha tese, menciono alguns críticos da religião que se mostraram simpáticos ao organicismo e ao hilozoísmo: Meslier (ainda que um legítimo advogado do materialismo) não se importa em confundir a ontogênese com a filogênese; Holbach é tolerante com a hipótese da eternidade das espécies e põe a filogênese sob a responsabilidade de “dados viciados”; Hume vê o hilozoísmo como uma alternativa viável ao design inteligente; Kant acredita que o argumento do desígnio é capaz de provar a existência de um arquiteto do mundo (e não a de um criador da matéria); Feuerbach abraça a teleologia imanente e o modelo embriológico da origem das espécies; Graham Oppy, aparentemente um materialista modelar, depõe em favor de uma modalidade de semiorganicismo ao argumentar que o fine-tuning poderia ser uma característica irredutível do cosmo; Gregory não pensa violentar o naturalismo quando atribui a Anaximandro um modelo filogenético calcado na ontogênese dos tricópteros (insetos alados que se desenvolvem na água).

Voltemos à avaliação da novidade pré-socrática e examinemos melhor se Gregory tem razão em realçar a inconstância dos deuses gregos. Ele formula, como vimos, o seguinte juízo: “[...] não há nenhuma evidência de que haja alguma relação entre o nível da ira de Posídon e a quantidade ou a intensidade do tremor que ele provoca. A ira nem sempre gera um tremor. Os homens tampouco são capazes de dizer o que deixará Posídon irado”. (8) O fato, porém, é que o religioso homérico tinha pleno conhecimento da existência de leis naturais (causa-me espécie, portanto, a crença de que o conceito de lei natural foi uma criação milésia). Havia na época de Agostinho um provérbio que dizia: Pluvia defit, causa Christiani (Se não chove, a causa são os cristãos). (9) A supressão dos sacrifícios tradicionais foi considerada, inclusive, a causa de uma calamidade devastadora: o saque de Roma por Alarico, rei dos visigodos, em 410. (10)

O orador ateniense Isócrates, não menos categórico, confere às ações dos deuses a precisão de um relógio: “[...] nem em seu culto e nem em suas festas [os atenienses da época de Sólon] portavam-se de modo irregular ou desordenado”; consequentemente, “[...] as coisas que se recebem das mãos dos deuses não lhes vinham com perturbações e fora do tempo, mas muito oportunamente, tanto no cultivo da terra como na colheita dos frutos”. (11)

Digno de nota é o fato de que a compreensão nomológica expressa por Isócrates chegou a adentrar a esfera das decisões jurídicas. Em 399 AEC, um certo Nicômaco foi acusado de adulterar o calendário ateniense de sacrifícios sancionados pelo Estado. Nas palavras do promotor,

Não devemos, senhores do júri, ser instruídos acerca da piedade por Nicômaco, mas olhar para o passado. Nossos ancestrais, que realizavam os sacrifícios ordenados nos antigos pilares, legaram a nós a maior e mais próspera cidade da Grécia; cabe a nós realizar os mesmos sacrifícios de antanho, por não outra razão além da boa fortuna que resultava desses ritos. (12)

Por meio desses e de outros testemunhos que poderiam ser multiplicados ad libitum, julgo que o conceito de lei natural está posto: no âmbito conceitual já constituído pelo religioso homérico, a ideia de um cosmo perfeitamente regulado é possível. Pouco importa se, no frigir dos ovos, os nexos regulares configurem-se como ilhas em meio a um oceano de incertezas – jamais a filosofia e a ciência posteriores edificarão uma imagem de mundo isenta de ruídos estocásticos. E por falar em ilhas de processos regulares, a metáfora revela-se mais apta do que parece à primeira vista. O que seria o planeta Terra, afinal, a não ser uma ilha no meio do cosmo? Inúmeros processos regulares são exclusivos de nosso planeta (as leis exclusivas da biologia, com efeito, não existem fora da biosfera – uma proposição tautológica). O mais importante, porém, é notar que as leis exclusivamente terrestres tiveram uma data de nascimento e terão uma data de morte: é o caso, por exemplo, do ciclo hidrológico, um processo regular que passou a existir há cerca de 3,8 bilhões de anos, quando o resfriamento da superfície da Terra permitiu a existência de água líquida.

Muitos diriam que o ciclo hidrológico não é uma lei da natureza em sentido estrito. Mas o que ganharíamos, no presente contexto, com tamanha precisão técnica? O único ponto relevante para meu argumento é a semelhança que existe entre um fenômeno como o ciclo hidrológico e os processos regulares concebidos pelos pré-socráticos. Esses filósofos sentiam-se em casa com um processo como o ciclo hidrológico. Vejamos a seguinte passagem do tratado hipocrático Ares, águas e lugares, uma obra que finca firmemente os pés no solo da ciência pré-socrática:

Eu tratarei agora de falar sobre a água da chuva e sobre a água da neve. As águas da chuva são as mais leves, doces, finas e claras. A princípio, o Sol eleva e puxa para cima a parte mais fina e leve da água, como está provado pela formação do sal. [...] Agora, enquanto tal parte está espalhada e rarefeita, ela vagueia pelos ares, mas tão logo se ajunta em algum lugar e é comprimida por ventos súbitos e contrários, então rebenta sempre que uma maior compressão ocorre. (13)

O ciclo hidrológico veio a ser e pode a qualquer momento deixar de existir. Uma flutuação quântica poderia, aliás, obliterar não apenas a Terra, mas o próprio Universo. De acordo com alguns modelos, uma flutuação quântica é capaz de gerar uma bolha que se propaga pelo Universo como um tsunâmi de proporções cósmicas. Num piscar de olhos, um clinâmen quântico amplificado engoliria nosso planeta. Muito me admira, assim, que alguns possam ver na religião grega tradicional a antítese da filosofia pré-socrática. Ou, dito de outra forma, parece evidente que nosso sistema de leis naturais não é menos volúvel do que o relógio suíço da teologia de Isócrates.

Não posso deixar de lembrar o profundo efeito que teve em mim a leitura de um texto do filósofo David Corner, Os milagres e o desafio da apologética. Evidência de que um acervo considerável de leituras adjacentes e de conhecimentos científicos é muitas vezes indispensável para a apreciação justa de uma filosofia. Corner argumenta que um milagre seria dificilmente distinguível de um lusus naturæ: uma brincadeira da natureza, ou seja, uma ocorrência espontânea. (14) Há lusus naturæ de diversos tipos, desde as anomalias congênitas mais desenxabidas até os cenários cósmicos mais espetaculares. Uma chuva de peixes decorre de uma conjunção bastante peculiar de fatores; os eventos quânticos individuais são indeterminados e operam na raiz das mutações biológicas (o que é a biosfera senão uma coleção de acidentes quânticos congelados?); a singularidade do big bang, no dizer de Quentin Smith, foi um estado imprevisível e anômico (lawless); (15) um cérebro de Boltzmann (ou qualquer estrutura dotada de complexidade semelhante) pode eclodir como uma flutuação quântica na vastidão do espaço (ou do tempo); uma flutuação espontânea do campo de Higgs pode arrastar o Universo para um abismo; as leis e as constantes físicas não se mantêm incólumes no núcleo caótico de um buraco negro. Repare que as condições físicas extremas do big bang e dos buracos negros transformam minha crítica a Gregory num overkill. Um substrato que flutua de modo caótico é a antítese perfeita de um substrato caracterizado pela regularidade. O ponto a ser realçado, com efeito, é o fato de que o mundo poderia ser crivado de anomalias que resultam de uma rotura real das leis da natureza (o mundo poderia ser eminentemente poroso, como se o caos do big bang fosse seu estado definitivo).

Agora, se os milagres não são apenas rupturas do tecido causal, mas injeções pontuais de design inteligente, o problema reduz-se a uma avaliação da hipótese básica do design inteligente (uma hipótese que sabidamente diz respeito às origens do cosmo e das espécies). Consequentemente, não consigo perceber a relevância da discussão sobre os milagres. Em um Universo quebradiço e repleto de estruturas orgânicas produzidas por um designer, os milagres equivaleriam ao nascimento de bebês (uma redundância); em contrapartida, em um mundo originado pelo caos, os milagres equivaleriam a um enclave geocêntrico em um universo infestado de planetas extrassolares.

É preciso notar, ademais, que inúmeros fenômenos são imprevisíveis até mesmo na ausência de violações reais do princípio da causalidade. Um fato, aliás, cediço, se pensarmos que as dificuldades práticas de previsão jamais estiveram atreladas à incerteza quântica (um luxo micrológico que afeta apenas as pretensões metafísicas do demônio de Laplace). O matemático britânico Marcus du Sautoy desconcerta os pedantes da metafísica com um exemplo prosaico: “Se eu pudesse prever a queda de dados, todos os jogos que dependem deles jamais teriam sido populares”. (16)

Alguns talvez pensem que faltava ao religioso homérico um refinamento na compreensão da essência de uma lei natural. A impressão é equivocada. Mais uma vez, digo que algumas clareiras de entendimento se abriram quando pude confrontar a filosofia grega com os conhecimentos que obtive pela leitura de tópicos adjacentes (sobretudo, ao frequentar a literatura científica contemporânea). Refiro-me aqui à noção de spandrel, cunhada pelos biólogos americanos Stephen Jay Gould e Richard Lewontin no artigo The Spandrels of San Marco and the Panglossian Paradigm (1979). Um spandrel é um espaço que, na arquitetura, constitui-se entre o topo de um arco e uma moldura retangular (pensemos nos quatro espaços grosseiramente triangulares que aparecem quando um círculo é inserido num quadrado). Com base no conceito de spandrel, Gould e Lewontin procuraram chamar a atenção para as características anatômicas e comportamentais que se formam como subprodutos de adaptações. Nosso apetite inato por gordura e açúcar, por exemplo, não é desativado nas atuais condições de abundância nutricional. Em outras palavras, nosso apetite não faz uma distinção entre nossa sociedade industrializada e as savanas do Pleistoceno. O que importa para a presente discussão é o fato de que o conceito de spandrel veicula de forma abstrata a consciência de que um caráter proteiforme (uma sensibilidade à variação de circunstâncias) é incompatível com a essência de uma lei natural. “Eu só faço os furos, quem mata é Deus”: nesta frase comparece de maneira jocosa o caráter proteiforme que se opõe à essência de uma lei natural.

Depois de absorver o conceito de spandrel, pude questionar com mais comodidade a natureza da inovação atribuída aos milésios. Com efeito, parece-me que a intuição mais ou menos clara da ocorrência de spandrels é um sinal de que a essência das leis naturais é compreendida – mais ainda, parece-me que a intuição mais ou menos clara da ocorrência de spandrels já aparece no âmbito da religião homérica. Um bom exemplo é o episódio do logro em Mecone, narrado por Hesíodo. No mito, Prometeu divide as partes de um boi em duas porções, tentando enganar Zeus. Em uma, esconde carne e entranhas ricas em gordura sob a pele do ventre bovino; na outra, esconde ossos sob uma capa apetitosa de gordura. A visão divina não perpassaria, segundo Prometeu, os envoltórios que recobriam os alimentos nutritivos e os ossos indigestos. (17)

A visão de Zeus, constrangida pelas leis que regulam a percepção, é um análogo de fenômenos como a masturbação, o sexo anal e o coito interrompido. Assim como os olhos divinos não distinguem entre uma superfície carnosa e um saco de ossos, o pênis que abandona precocemente uma vagina não distingue entre o calor de uma mão (ou de uma boca) e as doçuras de seu claustro natural. Ora, uma série de evidências adicionais traria um estresse intolerável à hipótese de que o religioso homérico ignorava a existência de spandrels. Ele sabia que os terremotos não atingiam os transgressores como mísseis teleguiados; ele conhecia, obviamente, o funcionamento de armadilhas e o fato de que o pênis muitas vezes prefere aninhar-se na cavidade anal. As mariposas são atraídas por chamas assassinas: este talvez seja o exemplo clássico de spandrel. Plínio descreve uma armadilha para atrair as mariposas que atacam colmeias: “[...] tochas são acesas diante das colmeias, as mariposas então se precipitam em enxames em direção à chama”. (18) O uso de métodos anticoncepcionais na Antiguidade também indica a consciência de spandrels: as mulheres gregas inseriam na vagina óleo de cedro, lã, unguentos e resinas. (19)

Nós deveríamos concluir, então, que os milésios não foram responsáveis por uma novidade substancial? Tal é meu parecer. A estrutura abstrata da religião tradicional é mantida. Leis naturais aparecem entremeadas com processos estocásticos. A substituição de deuses por objetos inanimados (rochas, nuvens, água) não se configura como uma revolução teórica, mas como a expressão de uma curiosidade supérflua – assim como, em Newton, a elucidação da causa da gravidade não resultaria em previsões diferentes. Eu ofereço a seguinte analogia: a dissecação da causa de um terremoto (fenômeno que, segundo Tales, reduzia-se ao choque entre corpos) equivaleria à dissecação dos corpos divinos, sem que uma mudança fundamental fosse introduzida no discurso filosófico. Ainda assim, embora eu não esteja inclinado a admitir uma revolução teórica, quer-me parecer que não seria justo reduzir a contribuição milésia a uma mudança cosmética ou a uma sofisticação que não afeta a estrutura da religião homérica. Estou disposto, portanto, a conceder que os milésios foram responsáveis pela introdução de um elemento significativo, mas mesmo assim sou obrigado a nuançar a importância do elemento que acolho como inovador.

A novidade não está, conforme procurei mostrar, na mera proposição de leis naturais, mas em um fato que raramente recebe a atenção dos intérpretes: os milésios opuseram-se à teleologia antropocêntrica que dava o tom à religião popular. Um sem-número de fenômenos deixa de ocorrer em função do homem. Os terremotos, antes instrumentos especiais de punição, agora atingem regiões desertas. (Somente agora? Repare na inusitada construção dessa frase; na verdade, os terremotos sempre afetaram regiões desertas, mas agora o olhar do filósofo pode perceber o que antes permanecia indistinto na orla da consciência.) Outrossim, as doenças e as intempéries passam a acometer os animais inocentes e até as plantas, sem que os interesses econômicos dos homens estejam em jogo.

Que magnífico tesouro filosófico encontramos na análise dos animais! A carne animal, com efeito, permite marginalizar a fenomenologia que muitos fazem girar em torno do ser humano – como se nossos irmãos irracionais (ou semirracionais) brotassem de nossos flancos à maneira de expansões que tornam impossível uma análise focal (símile do experimento da fenda dupla: uma partícula pontual converte-se numa nuvem difusa). Assim, como epítome da tendência filosófica estabelecida pelos milésios, considero incontornável uma passagem de Sobre a adivinhação por meio dos sonhos, uma obra de Aristóteles. Em determinado momento, Aristóteles dirige seu olhar para as margens da realidade humana: “Uma vez que certos animais inferiores também sonham, pode-se concluir que os sonhos não são enviados por Deus”. (20)

O argumento de Aristóteles – a sempre eficaz contemplação da periferia do mundo humano – pode ser considerado como a súmula daquilo que o pensamento milésio tem de realmente inovador. A inclusão de animais, de regiões desabitadas e de outros fatores excêntricos, aliás, faz-me lembrar que o estilo milésio de análise permite-nos criticar, entre outras, a crença daqueles que viram na AIDS uma punição divina aos homossexuais. Como deveríamos saber, as lésbicas não costumam contrair AIDS durante os atos sexuais.

Julgo oportuno citar a imagem sintética que Stenger elabora de uma cosmovisão aparentada à da religião homérica – imagem límpida, inteiriça, livre das perturbações usuais que impedem a previsão dos fenômenos:

Os eventos naturais poderiam obedecer a alguma lei moral, em vez de leis matemáticas moralmente neutras. Por exemplo, os relâmpagos poderiam atingir geralmente os perversos; os indivíduos que se comportam mal poderiam cair doentes com mais frequência; as freiras sempre sobreviveriam a desastres aéreos. (21)

Ao que tudo indica, Stenger refere-se à estrutura básica de uma lei como aquela que preside o desenvolvimento embrionário. Um zigoto transforma-se num indivíduo dotado de alta especificidade: seria difícil imaginarmos uma representação mais perfeita do sistema determinista. Pais, médicos, criadores e cientistas esperam, com toda razão, um resultado certo (a aposta é vantajosa). Porém, como todos sabemos, diversos bugs podem insinuar-se nas entranhas do processo. “As anomalias congênitas estão presentes em cerca de 3% dos recém-nascidos e são extremamente variáveis quanto aos tipos e ao seu mecanismo causal, mas todas surgem de um transtorno no desenvolvimento ontogenético”. (22) Além disso, Stenger assinala um tipo particular de lei da natureza: a lei moral. E a religião homérica, evidentemente, insuflava o cosmo com uma profusão de leis morais.

Cabe aqui um questionamento que pode parecer bizarro: nosso cosmo seria inteiramente destituído de leis morais? A depender da resposta, a novidade pré-socrática sofreria uma redução ainda mais severa. Ora, meu sentimento, por mais que eu não deseje menosprezar a crítica à teleologia antropocêntrica, é o de que os fenômenos biológicos são inseparáveis de leis morais. Os organismos não são massas amorfas ou coloides desorganizados. Trabalha-os internamente um esforço de autopreservação: trata-se do conatus de Spinoza ou, se se preferir, da homeostase. O admirável é que tal esforço manifesta-se como uma sagacidade orgânica extremamente refinada. Nós poderíamos pensar, por exemplo, nos artifícios implementados pelo sistema imunológico – os exércitos de células especializadas que o organismo envia para debelar infecções. Em muitos casos, a inteligência inconsciente dos processos fisiológicos atinge um nível inacreditável de sutileza, como quando, na transcrição do DNA, um sistema de sinalizadores moleculares indica as proteínas que devem ou não ser copiadas. Nossos computadores não agem com maior competência. (Recentemente pude encantar-me com a perspicácia de meu celular, no momento em que seu conatus interpretou o superaquecimento como um motivo razoável de desligamento automático.)

O domínio individual do conatus parece encarnar um conjunto de valores e de leis morais. Estaria garantida dentro de seus limites, portanto, a vigência de um esquema ontológico análogo ao da religião homérica. Um microcosmo. A homeostase de um indivíduo é sua divindade intrínseca, seu daimon privativo, seu lar (os lares romanos eram deuses que protegiam as casas e viviam próximos a lareiras). De acordo com William Harvey, o descobridor da circulação sanguínea, o coração é a “divindade doméstica que, ao exercer sua função, nutre, acalenta, estimula todo o corpo, sendo realmente a fundação da vida, a fonte de toda ação”. (23)

Restaria saber se, de algum modo, os limites individuais do conatus poderiam ser ampliados; em outras palavras, se a natureza ou um ecossistema particular poderia ser encarado como um conatus estendido. À primeira vista, parece não haver dificuldade. Nossos ouvidos modernos estão acostumados a frases sobre as consequências das ações humanas sobre o ambiente. Em Homero, a fumaça dos sacrifícios subia aos céus e excitava as narinas dos deuses; hoje, os gases resultantes da queima de combustíveis fósseis acumulam-se na atmosfera e ocasionam graves perturbações ecológicas.

Os indivíduos que se comportam mal adoecem com mais frequência? As freiras sempre sobrevivem a desastres aéreos? Não, mas a má alimentação e o desmatamento atentam contra a vida humana. Assim, estaríamos muito distantes da verdade se disséssemos que a hipótese de Gaia (desenvolvida por James Lovelock) atualiza os elementos essenciais da religião grega tradicional? Sob uma superfície de variações cosméticas, uma profunda semelhança.

O melhor meio de se enfrentar uma dificuldade teórica é um argumento gradualista (a extremidade de uma cunha penetra com mais facilidade do que a parte grossa). Os antigos chineses sacrificavam animais aos deuses. Pediam chuvas e outras benesses. Ao mesmo tempo, acreditavam que as relações entre os homens e a natureza eram reguladas por outros princípios, os quais destoavam mais ou menos da crença nos deuses e nos espíritos. Examinando as ideias dispostas num contínuo, nós aos poucos chegaríamos a concepções que praticamente não se distinguem dos pronunciamentos da moderna ecologia.

Na antiga China, a música era usada para influenciar os seres sobrenaturais. (24) No entanto, também tinha a função de moralizar o reino animal:

Vários textos documentam famosos mestres da música cuja atuação podia afetar ou encantar os animais. Frequentemente a maestria musical exibida por esses indivíduos é apresentada por meio de uma analogia entre a técnica do artífice e a arte do governo bem-sucedido. As melodias produzidas pelo tocador de alaúde Hu Ba supostamente fizeram os peixes saírem dos lagos para ouvir; Bo Ya tocou a cítara tão bem que os cavalos olharam para ele e esqueceram a forragem. (25)

Eu menciono o exemplo da antiga China para mostrar a existência de uma transição suave entre os animais e as entidades da religião tradicional (deuses e espíritos). A música, um análogo dos sacrifícios religiosos, era dirigida a ambas as classes de seres. A influência sobre o reino animal, por sua vez, pode ser despojada dos elementos místicos e reduzir-se ao tipo de relação que ocorre em nosso mundo real. Ainda que a música não afete todos os animais (e nem produza os efeitos miraculosos relatados na literatura chinesa), é sabido que muitas espécies podem beneficiar-se do contato com alguns tipos de música. É verdade também que a música é apenas uma ínfima parte das relações que travamos com os animais. Nós somos organismos integrados a ecossistemas complexos. Nossas ações reverberam sobre a natureza e desencadeiam efeitos estocásticos. Qual seria, assim, a diferença essencial entre nossa mentalidade científica e as crenças do religioso homérico?


Bibliografia

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BORGES-OSÓRIO, M. R.; ROBINSON, W. M. Genética humana. Porto Alegre: Artmed, 2013.

CARRICK, P. Medical Ethics in the Ancient World. Washington: Georgetown University Press, 2001.

CORNER, D. Miracles and the Challenge of Apologetics. In: LOFTUS, J. (ed.). The Case Against Miracles. [S. l.]: Hypatia Press, 2019.

CRAIG, W. L.; SMITH, Q. Theism, Atheism, and Big Bang Cosmology. Oxford: Oxford University Press, 1995.

DU SAUTOY, M. What We Cannot Know. Londres: 4th Estate, 2016.

GREGORY, A. The Presocratics and the Supernatural. Londres: Bloomsbury, 2013.

______. Early Greek Philosophies of Nature. Londres: Bloomsbury, 2020.

HARVEY, W. On the Motion of the Heart and Blood in Animals. Londres: George Bell and Sons, 1889.

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HIPÓCRATES. Airs Waters Places. In: Volume I. Cambridge: Harvard University Press, 1923.

ISÓCRATES. Areopagítica. In: Oraciones políticas y forenses. Madri: Librería de la Viuda de Hernando, 1891.

MUNN, M. The School of History. Berkeley: University of California Press, 2002.

PLÍNIO. Natural History. Londres: Henry G. Bohn, 1856.

SÊNECA. Natural Questions. Chicago: University of Chicago Press, 2010.

STENGER, V. God: the Failed Hypothesis. Amherst, NY: Prometheus, 2008.

______. God and The Folly of Faith: The Incompatibility of Science and Religion. Amherst, NY: Prometheus, 2012.

STERCKX, R. The Animal and the Daemon in Early China. Albany: State University of New York Press, 2002.


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) Early Greek Philosophies of Nature, p. 1.

(2) SÊNECA, Natural Questions, p. 93.

(3) Early Greek Philosophies of Nature, p. 50.

(4) PLUTARCO apud GREGORY, The Presocratics and the Supernatural, p. 187.

(5) Early Greek Philosophies of Nature, p. 1.

(6) God and The Folly of Faith, p. 53.

(7) The Presocratics and the Supernatural, p. 63.

(8) Early Greek Philosophies of Nature, p. 50.

(9) The City of God, Livro II, cap. 3, p. 50.

(10) Ibid., Livro I, cap. I, p. 2-3.

(11) Areopagítica, p. 221.

(12) Apud MUNN, The School of History, p. 276.

(13) Airs Waters Places, p. 91-93.

(14) Miracles and the Challenge of Apologetics, p. 51-52.

(15) Theism, Atheism, and Big Bang Cosmology, p. 201.

(16) What We Cannot Know, p. 21.

(17) Teogonia, p. 69-71.

(18) Natural History, vol. IV, Livro XXI, cap. 47, p. 344.

(19) CARRICK, Medical Ethics in the Ancient World, p. 119.

(20) Apud GREGORY, The Presocratics and the Supernatural, p. 33.

(21) God: the Failed Hypothesis, p. 233.

(22) BORGES-OSÓRIO & ROBINSON, Genética humana, p. 206.

(23) On the Motion of the Heart and Blood in Animals, p. 49.

(24) STERCKX, The Animal and the Daemon in Early China, p. 135.

(25) Ibid., p. 130.



11/04/2025

FOR MY MONEY (textos breves)

Continuamos nossa nova iniciativa no blog: publicar, a princípio semanalmente, reflexões mais curtas e mais leves compartilhadas por Giuliano Casagrande em suas redes sociais, especialmente o Facebook, e que julgamos dignas de também serem fixadas aqui! Queremos variar um pouco o conteúdo e não presentear o público apenas com suas produções mais densas, rigorosas e cheias de citações, mas também com “gatilhos para o pensamento”, que vamos chamar aqui de textos breves.

Nesses tempos de falta de conteúdo nas mídias digitais, mesmo esses parágrafos podem não parecer “breves” o suficiente, mas a contribuição de Giuliano para levantar o debate entre seus contatos constitui tamanho diferencial que mereceria mais divulgação! Encorajamos a entrada em nosso grupo do Facebook, para quem ainda tem aí uma conta, no qual as reflexões também aparecem e você pode entrar diretamente em contato com ele. Porém, também pedimos a divulgação exatamente desta publicação em suas redes e entre seus amigos, a fim de espalhar cada vez mais o materialismo filosófico!



FOR MY MONEY

For my money”, os exemplares ressuscitados de lobo-terrível são legítimos, e digo mais: o caso em pauta provocou um atrito salutar no cerebelo de uma multidão de palermas, e com isso fez saltar para fora uma indecorosa tara essencialista. Purismo dos tolos. Metafísica dos parvos.

Os que torcem o nariz para os novos (ou velhos) lobos-terríveis parecem ser dotados de um estupendo instrumento óptico, o qual, diferentemente da visão limitada dos insignificantes mortais, permite ver fundo na carne dos animais e atestar sua falsidade. Foi difícil para mim acreditar no que eu via: não foram poucos os que levantaram a voz para alegar que o único tipo de ressurreição fidedigno seria a (indubitavelmente mágica) restauração dos próprios animais extintos.

Hein? Haveria na crença desses lunáticos um protoplasma místico, uma substância vital que é transmitido de pais para filhos. Um fluido sairia das gônadas do pai e, em conjunção com um fluido proveniente da mãe, constituiria o estofo vital do indivíduo. Massa de pão, fermento, líquido seminal que se expande no útero. Eis a incrível crença das bestas que se puseram a desqualificar o novíssimo feito da engenharia genética. Crença de anões intelectuais.

Vejamos bem, o que pai e mãe transmitem são INFORMAÇÕES abstratas, e não um protoplasma mágico. E foi justamente no âmbito das informações abstratas que a recriação do lobo-terrível foi alcançada. Informações são entes matemáticos. As informações retiradas dos fósseis serviram de molde para que se fizessem modificações nos genes de um lobo-cinzento. E não poderíamos exigir mais!

O animal que temos é satisfatório: é o melhor que poderíamos ter. Não há essência metafísica alguma, há características palpáveis, há um feixe empírico de traços e tal acervo permite-me julgar que estou diante de um animal trazido (ou, traduzido, o que dá o mesmo) de uma ancestral paisagem pleistocênica.


05/04/2025

CIÊNCIA (textos breves)


Endereço curto: materialismo.net/ciencia

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CIÊNCIA

Método fácil de apanhar um oligofrênico em flagrante de delito: interrogar sobre a natureza da “descoberta” de Darwin. Se nosso amigo citar a descoberta de novos fatos, devemos imediatamente reconhecer que estamos diante de um tolo. Concepção ingênua de ciência. Eureca! Darwin viajou ao redor do mundo e descobriu tantos fatos novos! Ele viu a evolução em curso... Santa ingenuidade!

Ver o mesmo, concluir o oposto. Darwin recebeu inspiração de sua viagem a bordo do Beagle. Uma inspiração atua ao nível psicológico, subjetivo. Faz parte da esfera da heurística (arte psicológica da descoberta), e não da justificação. Da mesma maneira, um indivíduo pode convencer-se da miséria do mundo e da obscenidade das teodiceias ao visitar um hospital. Não há nada de objetivo nisso. Os fatos observados em hospitais são objetivamente cediços.

Ver o mesmo, concluir o oposto. Ver o novo dentro do velho. O último órgão descoberto pela ciência é, paradoxalmente, um velho conhecido – o mesentério, membrana que envolve e sustenta o intestino. Um sem-número de cirurgiões e anatomistas viu o mesentério. Mas não enxergou nele um órgão unitário, e sim vários fragmentos. Trata-se de reaprender a ver o mundo.

Darwin dificilmente descobriu um fato novo. Louis Agassiz, um zoólogo muito mais instruído do que Darwin, viajou pelo mundo, teve acesso às mesmas (e a muitas outras) observações – no entanto, chegou a conclusões opostas.

A essência da contribuição de Darwin: coligar fatos dispersos e elaborar técnicas de convencimento psicológico. Domesticação de cães e pombos: um antigo mesentério. Anatomia comparada: outro mesentério já centenário à época de Darwin. As espécies das Galápagos: mais uma velha novidade mesentérica...