16/05/2025

Os primórdios do pensamento filosófico ocidental

A história do ateísmo cientifico no Ocidente remonta à antiga Grécia (é um pleonasmo vicioso, contudo, falar-se em “ateísmo científico”). Houve ateísmo quando Eurípedes expôs a primeira formulação do argumento do mal que chegou ao nosso conhecimento; houve ateísmo quando Empédocles e os atomistas elaboraram a derivação materialista do mundo. Antes disso pode ter havido ateísmo, é claro, mas não conhecemos seus proponentes. Nada melhor, portanto, do que iniciar meu panorama histórico com um aperçu da religião grega tradicional. Ainda que nem todas as questões abordadas a seguir toquem diretamente o eixo temático deste panorama, a análise de uma porção de questões adjacentes é salutar ou mesmo imprescindível para a formação de uma imagem adequada da história do ateísmo científico.

Uma questão adjacente (dada a prevalência de algumas manias historiográficas, uma questão ousada) é a de se houve filosofia antes de Tales de Mileto. A análise da filosofia pré-milésia permite fortalecer a compreensão do ateísmo, pois abriga uma crítica dos NOMA (non-overlapping magisteria) de Stephen Jay Gould; permite colocar sob suspeita o red herring que consiste em exaltar o pendor nomológico milésio; permite ainda, entre outros benefícios, saber que o estabelecimento de um cânone ortodoxo de pensadores pré-socráticos trabalha em favor da agenda ontologista, a qual transforma a filosofia numa meditação sobre a substância (com a concomitante valorização de pensadores como Tomás de Aquino e Heidegger). O apreço por um cânone de pensadores pré-socráticos, aliás, além de refletir modismos escolares mesquinhos, impede o reconhecimento de que figuras como os dramaturgos gregos muitas vezes desenvolveram reflexões mais interessantes do que as dos pensadores considerados canônicos.

Todos conhecemos a narrativa que opõe a filosofia ao mito. Em primeiro lugar, é preciso dizer que a religião grega não é coextensiva ao mito, ou seja, que o mito agrega a ela uma série de informações suplementares sobre os deuses; em segundo lugar, que a religião grega é de jure independente do mito; em terceiro lugar, que o pensamento do religioso grego assentava no raciocínio lógico e na observação; em quarto lugar, que o mito não é a priori avesso à razão.

A religião grega popular estava de facto agregada ao mito, ainda que fosse de jure dissociável. O mito, afinal, compunha-se de informações que a prática piedosa podia ignorar. (Uma pergunta: o devoto católico depende da Suma teológica para exercer sua fé?) De acordo com Heródoto,

De onde cada deus surgiu, se todos eles sempre existiram, que forma eles tinham – tais coisas eram completamente ignoradas pelos gregos até anteontem, por assim dizer. Com efeito, Homero e Hesíodo foram os primeiros a compor teogonias, a dar aos deuses seus epítetos, a conceder a cada um seu cargo e sua ocupação, e a descrever suas formas. (1)

Antes desses poetas os cultos já eram praticados, sem dúvida, e os teólogos naturais, os oráculos e os videntes abriam uma fresta para a contemplação da natureza divina. Homero e Hesíodo, no entanto, enriqueceram o ideário religioso com um cabedal de informações adicionais – um conhecimento que permitiu o desnudamento efetivo da natureza das coisas e transformou a religião grega numa cosmovisão abrangente. As informações que os mitos trazem sobre a origem do mundo, com efeito, compõem aquilo que os pensadores de língua inglesa chamam de big picture: uma cosmovisão abrangente, uma visão totalitária da existência.

A teogonia de Hesíodo é uma cosmovisão materialista. A matéria, no caso, são o desejo sexual e a fisiologia reprodutiva dos deuses. De acordo com Stephen Scully, “O mais perto que o mito grego [de Hesíodo] chega de propor o design inteligente é com a figura de Eros, mas o desejo sexual e o destino biológico têm pouco a ver com a intenção consciente”. (2)

Os deuses hesiódicos originam-se de causas ininteligentes. Em alguns casos, o surgimento de um deus é aparentemente tão imotivado quanto um evento quântico: Gaia, uma das deusas primordiais, simplesmente brota do caos, uma realidade que, em Hesíodo, é definida como um grande espaço vazio (ainda não estamos na época de Ovídio, o poeta cosmogônico que concebeu o caos como uma matéria confusa). Os outros deuses, em sua maioria, provêm de relações sexuais análogas às humanas.

É de se notar que o caráter materialista da teogonia hesiódica não existiria sem o evolucionismo. Adstrita à partenogênese e a relações endogâmicas com seus próprios descendentes, Gaia tira de si mesma uma progenitura incrivelmente diversificada: de seu útero saem acidentes geográficos, corpos de água, monstros e criaturas marcadamente antropomórficas. Ainda assim, seria temerária a tese de que Hesíodo propôs um materialismo bona fide. Os pensadores da época, ao que parece, ignoravam o argumento do desígnio e a teoria do design inteligente; as adaptações orgânicas, para eles, não apareciam como um problema ou um explanandum. Como poderia, então, haver um materialismo substancial?

O máximo que consegui encontrar nos textos de Hesíodo foi uma passagem da história de Pandora em que Zeus confecciona uma característica engenhosa dos agentes morbosos (verdadeiras armas biológicas enviadas aos homens como punição): “[...] doenças para os homens, umas de dia, outras de noite, espontâneas, vagam, males aos homens levando em silêncio, pois tirou a voz o astuto Zeus”. (3) Ao contrário de uma cascavel, que anuncia sua chegada de modo ruidoso, as doenças fabricadas por Zeus aproximam-se em silêncio. Pode haver aí, de fato, uma compreensão implícita da engenhosidade das adaptações orgânicas, mas a evidência não me parece convincente. Agora, caso eu esteja errado, o estilo das explicações genéticas de Hesíodo torna-se enigmático. Afrodite brota da espuma que se desprende do pênis decepado de Urano: um pedaço de carne, portanto, engendra a deusa da beleza. O que deveríamos pensar da etiologia desse fenômeno? Se as adaptações orgânicas são realmente um explanandum interessante, poderíamos dizer que Hesíodo está ciente dos nexos físicos que comporiam um explanans adequado?

Podemos deixar de lado essa questão e perguntar, em vez disso, se a acusação normalmente dirigida aos mitos é verdadeira. É notória a narrativa inculcada nos alunos virginais já no primeiro dia de aula: mito e filosofia são maneiras antitéticas de explicar a realidade. O problema, no entanto, é que o mito não é a priori avesso à filosofia e à ciência. Alguma circunstância mundana poderia garantir que os mecanismos de transmissão cultural fossem fidedignos. Uma viagem no tempo seria uma circunstância ideal. Os cérebros poderiam ser filmadoras confiáveis e as pessoas poderiam ter uma aversão inata ao ato de mentir (a ideia de proferir uma mentira maliciosa seria tão repugnante quanto a ideia de ingerir querosene). Os deuses poderiam realizar no presente milagres tão ou mais impressionantes do que os eventos narrados pelos poetas (atribui-se ao deus Asclépio, por exemplo, a criação de um globo ocular onde antes havia apenas uma órbita vazia (4) ).

Tais hipóteses dizem respeito à questão epistemológica da origem dos mitos. Agora, com relação ao conteúdo propriamente dito dos mitos (e não mais à origem), digo que não há nada de a priori implausível na ideia de que alienígenas resultantes de um processo evolutivo decidem criar a humanidade. Não há nada de a priori implausível sequer na ideia de que a Terra e o cosmo são superorganismos. Os telescópios mais modernos captam uma estrutura colossal que recebe o nome de “pilares da criação”. Trata-se de um aglomerado de poeira e gás situado na nebulosa de Águia. Nas fotografias podemos ver três torres imponentes – uma delas poderia ser o pênis de Urano, caso ele não tivesse sido decepado. Ademais, há vários adeptos esclarecidos do candomblé e da umbanda, religiões que, a meu ver, não diferem de modo significativo da religião grega.

Com muita razão David Berlinski, depois de descrever a miríade de estranhezas (muitas delas em franca oposição a um materialismo ingênuo) que hoje integra a compreensão científica do mundo, declara: “Se amanhã os físicos determinassem que a física de partículas requer um acesso à ubiquidade do corpo de Cristo, tal doutrina seria prontamente declarada como um princípio físico e tratada de modo correspondente”. (5) Ora, o cardápio é realmente suntuoso. A imagem de mundo sancionada pela ciência atual é mais fantástica do que os sonhos mais loucos da mitologia. Temos até uma recente comprovação empírica da metempsicose (ou, não sei ao certo, da ressurreição da carne ou da sobrevivência da alma) – após a morte, algumas células transformam-se em organismos diferenciados e autônomos: “Pesquisadores descobriram [...] que células solitárias de pulmões humanos podem agrupar-se e dar origem a pequenos organismos multicelulares capazes de perambular pelos arredores”. (6) Os interessados devem procurar por biobots, xenobots e anthrobots.

No mundo real há leões-asiáticos, mas não leões-europeus (uma subespécie extinta); há metempsicose de certos elementos vitais, mas não da personalidade; há animais que podem regenerar membros amputados (salamandras, estrelas-do-mar e outros), mas não humanos capazes de fazê-lo; há ornitorrincos, mas não sereias; há gatos mortos-vivos, mas não gatos bioluminescentes; há partículas (e até mundos) que surgem espontaneamente do nada, mas não há, ao que tudo indica, monopolos magnéticos. As coisas mais absurdas e contrárias ao materialismo ingênuo existem; uma infinidade de variações minúsculas e prosaicas, não. É um ignorante, portanto, quem considera que o mito é a priori incompatível com a filosofia e com a ciência. É igualmente inepta a estirpe de fisicalistas que, a exemplo de Hobbes e Feuerbach, considera que uma entidade imaterial seria contraditória e filosoficamente inadmissível – de acordo com as propostas mais ousadas da gravitação quântica, o espaço-tempo emergiu de um estranhíssimo substrato imaterial.

O mais intrigante é que a vingança dos mitos ocorre da maneira mais monstruosa e insolente que se poderia imaginar. A teoria da inflação é o modelo cosmológico mais aceito atualmente. Uma de suas predições é a existência de um multiverso que se alastra indefinidamente no espaço. Ora, dado o número infinito de eventos acidentais na amplidão do multiverso, os físicos calculam que todas as configurações possíveis seriam realizadas algures.

O mito, contudo, era uma parte contingente da religião grega. Vimos a declaração de Heródoto sobre o caráter adventício das explicações mitológicas: “De onde cada deus surgiu, se todos eles sempre existiram, que forma eles tinham – tais coisas eram completamente ignoradas pelos gregos até anteontem, por assim dizer”. (7) Dissociada do mito, a religião grega limitava-se a explicar o estado presente do mundo: com base na observação e no raciocínio lógico, o teólogo desprovido das informações trazidas pelo mito podia inferir que os fenômenos do mundo atual eram operados por uma casta de seres sobre-humanos.

O que me deixa perplexo, no entanto, é a facilidade com que se costuma afirmar que a filosofia teve início com Tales. O religioso pré-milésio estabelecia correlações entre os fenômenos. Muitas vezes ele observava, por exemplo, que a prosperidade de um povo estava associada à prática judiciosa de sacrifícios. Os cientistas atuais não raciocinam de modo diferente. Hoje procura-se saber, entre outras coisas, se a religiosidade está associada à menor incidência de doenças cardíacas. Uma covardia desprezível, portanto, é a mania dos que insistem em enxergar num filosofema esfarrapado de Tales uma revolução filosófica. Por mais que eu procure ser caridoso, não consigo notar na gênese hídrica de Tales uma teoria particularmente sofisticada. Ora, o contrário parece ser verdadeiro: sofisticado é o raciocínio do religioso pré-milésio. Não é a gênese hídrica, afinal, que ainda perdura na ciência moderna.

Parece óbvio que os NOMA de Gould (os quais já existiam antes da formalização de Gould) são um dos princípios epistemológicos que orientam essa tendência historiográfica. Admitindo-se que a ciência e a religião consistem em domínios separados e imiscíveis, pretende-se (oh, mistério!) reduzir o potencial crítico da ciência e imunizar o núcleo duro da religião. Tal é o efeito almejado quando se defende a pureza das categorias – no caso em questão, a clivagem entre a filosofia e a religião grega tradicional. Não é por outro motivo que muitos hoje excluem o design inteligente da órbita da ciência.

Robert Parker, um dos maiores estudiosos atuais da religião grega, é um dos poucos que contrariam a narrativa dominante. A leitura de Parker traz-nos alívio e um pouco de ar puro; depois de estabelecer um paralelo entre a obra de William Paley (o célebre teólogo natural do início do século 19) e as evidências que sustentavam a crença de Sófocles e Píndaro (um dramaturgo e um poeta), Parker declara:

A maior evidência [...] da existência dos deuses é o fato de que a piedade funciona: a recompensa pela veneração dos deuses em conformidade com modos consagrados pela tradição é a prosperidade. O contrário é o fato de que a impiedade conduz ao desastre; e, embora o nexo entre a piedade e a prosperidade não seja frequentemente usado como prova da existência dos deuses, as aflições dos maus são realmente uma evidência bastante citada. (8)

Parker privilegia a correlação entre a prosperidade e a prática de sacrifícios, mas outros tipos de evidências podem ser mencionados. A visão de fantasmas, os sonhos proféticos e os milagres, aliás, constituem um corpo de evidências ainda mais portentoso do que as correlações analisadas por Parker. Eu considero particularmente significativo o fato de que Sexto Empírico estabelece um paralelo entre os eidola de Demócrito e a origem da crença nos deuses gregos: “Foi com base na aparição dessas coisas [eidola] que os antigos vieram a crer na existência de deuses”. (9) Os eidola são filmes atômicos emitidos pelos organismos; são como as luzes (fótons) provenientes de estrelas que desapareceram há milhões de anos, mas que continuam a impressionar nossos olhos. Como explica Gregory,

Eidolon tem um significado mais amplo do que “imagem” e pode significar “espectro” ou “fantasma”. Homero faz um uso significativo do termo neste sentido através da Ilíada e da Odisseia, ele emprega eidolon ao falar de fantasmas, espectros e visagens que aparecem aos heróis em vários estágios e desempenham uma parte importante na trama. (10)

Torna-se um pouco estranha, assim, a atitude dos que se opõem à hipótese de uma filosofia pré-milésia. Eles não se dão conta do embaraço em que caem, pois jamais pensariam em excluir Demócrito do grupo dos filósofos pré-socráticos. Seria igualmente bizarra a opinião dos que considerassem que as cosmologias milésias (Anaxímenes, por exemplo, sustentava que o mundo advinha da condensação do ar) são peças teóricas mais robustas do que as pesquisas sobre fantasmas e outros fenômenos parapsicológicos. Quem hoje propusesse uma cosmogonia hídrica seria prontamente ridicularizado (assim como são tratados os que acreditam numa Terra plana); a mediunidade, em contrapartida, ainda exige dos céticos a elaboração de críticas minimamente cuidadosas.

De acordo com Taylor, Demócrito preserva o nervo da religião tradicional:

A teologia de Demócrito [...] esforça-se para incorporar alguns dos traços mais característicos dos deuses da crença tradicional, notadamente seu antropomorfismo, poder, longevidade (mas não, crucialmente, imortalidade), interação pessoal com os homens e interesse (benéfico ou maléfico) na vida humana, à estrutura de uma teoria naturalista e materialista. Ela é, portanto, não obstante a audaciosa originalidade de sua explicação da natureza divina, notavelmente mais conservadora do que algumas de suas predecessoras (especialmente a teologia não antropomórfica de Xenófanes) [...].(11)

Os deuses hesiódicos tinham origem na matéria; os deuses democritianos, igualmente. Para Demócrito, o percurso era indireto: os homens formados por conjunções atômicas casuais emitiam eidola que, à maneira das assinaturas espectrográficas dos elementos químicos, conservavam resquícios dos organismos emissores. A atmosfera estava, por conseguinte, repleta de ectoplasmas, simulacros ou energias de organismos defuntos.

Taylor elabora a seguinte síntese da teoria de Demócrito:

De acordo com Cícero, Plutarco e Sexto, alguns desses eidola são nocivos e alguns são benéficos; Sexto acrescenta que eles predizem o futuro falando com os homens. O fraseado das passagens de Cícero e de Sexto deixa em aberto se o bem e o mal feitos aos homens são concebidos como meros efeitos naturais dos encontros com os eidola, ou como efeitos intencionalmente provocados por eles; Plutarco, por outro lado, claramente interpreta Demócrito como um defensor da última perspectiva, uma vez que, segundo Plutarco, Demócrito pensa que alguns eidola são maliciosos e faz orações [no sentido de rezar] para encontrar somente aqueles que são propícios [...].(12)

Imagine a atmosfera apinhada de deuses mortos (eidola inconscientes, peles abandonadas por cobras); seus corpos diáfanos vagueiam como os corpúsculos de células mortas que flutuam no humor vítreo dos olhos (as manchas e os filamentos que costumamos enxergar contra um céu azul); pense, se preferir, no oceano de radiações eletromagnéticas que preenche o espaço. A oração propicia o encontro com eidola benfazejos, pois a disposição mental cultivada pelo indivíduo vivo harmoniza-se com a assinatura psíquica armazenada em cada eidolon (talvez o estado mental produzido pela oração bloqueie a intromissão dos eidola malfazejos – como uma conexão de Wi-Fi); um problema psicológico como a depressão, ao que tudo indica, seria atribuído por Demócrito a uma classe específica de encostos. Seria exagero afirmar, então, que Demócrito conserva até mesmo o valor dos sacrifícios tradicionais? Se o preparo de uma oferenda pode servir de apoio para a criação de um estado mental favorável, vemos que Demócrito desponta como um legitimador de alguns dos aspectos mais repulsivos da religião grega.

Além do mais, que grave inconsistência haveria em se pensar que as fumaças dos sacrifícios contêm fragrâncias capazes de atrair ou afugentar algumas espécies de eidola? Diz a lenda, com efeito, que o aroma de pãezinhos recém-saídos do forno deu a Demócrito uma sobrevida de três dias: “Assim, aproximando-os das narinas, conseguiu sobreviver durante todos os dias da festa [das Tesmoforias]. Transcorridos os três dias festivos, ele expirou sem o mínimo sofrimento, com a idade de cento e nove anos [...]”. (13) A passagem, se não por outro motivo, mostra um filósofo atento às propriedades pneumatológicas dos eflúvios, o que nos permite pensar que as emanações resultantes da queima de oferendas poderiam interagir com os eidola dispersos no ar. Convém notar, ademais, a concepção de alguns pitagóricos, aparentada à de Demócrito. Aristóteles registra a seguinte opinião: “E o que dizem os pitagóricos parece seguir o mesmo raciocínio, pois alguns deles declararam que a alma são as poeiras no ar; outros, por sua vez, que ela é o que faz com que se movam”. (14)

Demócrito não teria dificuldade para admitir que os grãos de poeira dançantes (e os eidola espalhados pela atmosfera) são propelidos pelas colisões aleatórias de átomos de ar (ele defendia, com efeito, a gênese acidental dos seres vivos). Tratar-se-ia, no caso, de uma intuição do movimento browniano, o movimento aleatório de partículas suspensas num líquido ou num gás. Outra imagem sugestiva é a do vácuo quântico, uma porção de espaço em que fervilham partículas provenientes do nada (neste exato momento, de forma análoga, trilhões de fótons são emitidos espontaneamente pela lâmpada de minha sala). Demócrito acreditava, inclusive, que a Terra era ocasionalmente bombardeada por detritos malfazejos oriundos do grande cosmo: “Sabemos que Demócrito disse e escreveu que, quando mundos situados fora do nosso são destruídos, corpos alienígenas precipitam-se para cá e são frequentemente a fonte de pestes e outras ocorrências extraordinárias”. (15)

“Ocorrências extraordinárias”: Demócrito refere-se, evidentemente, a processos estocásticos. O extraordinário é o imprevisível (pelo menos, para as mentes incapazes de fazer uma leitura profunda dos mecanismos subjacentes – nem todos têm as prerrogativas epistêmicas do demônio de Laplace, a entidade imaginária capaz de obter informações completas sobre o estado físico das partículas). Daí a imagem de mundo que se sobressai das ideias supracitadas de Demócrito: de um lado, vivemos imersos num aquário repleto de restos mortais de deuses; de outro, sofremos os ataques imprevisíveis de detritos alienígenas. Agora a pergunta: seria forçar demasiadamente os limites da ontologia democritiana se admitíssemos que a aleatoriedade quântica (ou, para os mais castiços, o clinâmen epicurista) poreja de formas variadas em nosso mundo macroscópico? O seguinte cenário esboçado pelo fisiologista americano Dennis Trumble é bastante elucidativo:

[...] nossos corpos são constantemente bombardeados por radiação gama proveniente de fontes naturais como o rádio e o potássio-40 (geralmente encontrado em solos, águas, carnes e alimentos ricos em potássio), e você pode apostar sua vida no fato de que alguém em algum lugar do mundo desenvolverá câncer nos próximos minutos, ou horas no máximo, pela mera razão de que um átomo instável em algum lugar da Terra (ou fora dela) emitiu de forma aleatória um fóton altamente energético que simplesmente calhou de aterrissar no lugar errado no momento errado. (16)

As várias transições suaves expostas acima mostram que, além de ser filosófica e científica, a religião grega tradicional não foi violentamente negada pelo naturalismo pré-socrático. É plenamente concebível um cenário em que os eidola de Demócrito (compreendidos como deuses mortos ou películas inconscientes) apresentam um comportamento irregular e interagem de forma estocástica com os homens.


Bibliografia

ARISTÓTELES. De anima. São Paulo: Ed. 34, 2006.

BERLINSKI, D. The Devil’s Delusion. Nova York: Basic Books, 2009.

COTTER, W. Miracles in Greco-Roman Antiquity. Londres: Routledge, 1999.

GREGORY, A. The Presocratics and the Supernatural. Londres: Bloomsbury, 2013.

HERÓDOTO. The History. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952.

HESÍODO. Trabalhos e dias. São Paulo: Hedra, 2013.

LAÊRTIOS, D. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.

NOBLE, P. A.; POZHITKOV, A. Biobots arise from the cells of dead organisms − pushing the boundaries of life, death and medicine. The Conversation, 12 set. 2024. Disponível nesta página.

PARKER, R. On Greek Religion. Ithaca: Cornell University Press, 2011.

SCULLY, S. Hesiod’s Theogony: From Near Eastern Creation Myths to Paradise Lost. Oxford: Oxford University Press, 2015.

TAYLOR, C. C. W. The Atomists: Leucippus and Democritus. Toronto: University of Toronto Press, 2010.

TRUMBLE, D. R. The Way of Science. Amherst: Prometheus, 2013.


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) The History, Livro II, cap. 53, p. 60.

(2) Hesiod’s Theogony: From Near Eastern Creation Myths to Paradise Lost, p. 25.

(3) Trabalhos e dias, p. 37.

(4) COTTER, Miracles in Greco-Roman Antiquity, p. 17.

(5) The Devil’s Delusion, p. 54.

(6) NOBLE, P. A.; POZHITKOV, A. Biobots arise from the cells of dead organisms − pushing the boundaries of life, death and medicine. The Conversation, 12 set. 2024. Disponível nesta página.

(7) The History, Livro II, cap. 53, p. 60.

(8) On Greek Religion, p. 3.

(9) Apud TAYLOR, The Atomists: Leucippus and Democritus, p. 141.

(10) The Presocratics and the Supernatural, p. 195.

(11) The Atomists: Leucippus and Democritus, p. 215-216.

(12) Ibid. , p. 214.

(13) LAÊRTIOS, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 262.

(14) De anima, p. 50.

(15) PLUTARCO apud GREGORY, The Presocratics and the Supernatural, p. 187.

(16) The Way of Science, p. 12.