18/06/2025

“Aperçu” da filosofia pré-socrática

Vimos em artigos anteriores que a religião homérica já era filosófica e científica (aliás, em maior grau do que certas proposições pré-socráticas). Uma tese, quer-me parecer, aventurosa, apesar dos dados apresentados em meu favor. Mencionei o historiador Robert Parker, que não hesita em atribuir ao religioso homérico um pensamento não apenas racional (fundado no raciocínio lógico e na observação dos fenômenos), mas nomológico: “O argumento das recompensas da piedade é em princípio empírico: a preocupação dos deuses pela humanidade é confirmada pelo tratamento diferencial dado aos bons e aos maus”. (1) Parker, no entanto, não é o único. Eu poderia citar o teólogo Jaco Gericke, um defensor do caráter filosófico de algumas ideias descritas no Antigo Testamento. Embora Gericke fale dos antigos israelitas, a cosmovisão analisada por ele não é essencialmente distinta da dos gregos:

[...] todo o ponto dos “milagres” (sinais) e da revelação por meio de teofanias, audição, sonhos, adivinhação e da história pode ser encarado como pressupondo uma epistemologia evidencialista (veja a frequentemente repetida fórmula “para que saibais...”). Os filósofos da religião [pelo menos, alguns] negarão que se possa verificar a existência de Deus nesse sentido empírico, porém, de acordo com o Antigo Testamento, o próprio Javé assume que isso é possível. (2)

Vimos também que Andrew Gregory e outros intérpretes consideram que a noção de lei natural assinala o surgimento da filosofia pré-socrática. Um substrato que flutua de modo imprevisível, de acordo com Gregory, seria incompatível com uma filosofia da natureza que prescinde de interferências divinas. O absurdo da opinião de Gregory é autoexplicativo. Se eu perguntasse a qualquer pessoa minimamente informada se o caos quântico é incompatível com a ciência e com uma cosmovisão livre de interferências divinas, que resposta eu obteria? Além do mais, vimos que o filósofo pré-milésio estava longe de ignorar a noção de lei natural. O testemunho de um certo Nicolau (um siracusano que proferiu um discurso após a derrota ateniense na Guerra do Peloponeso) talvez seja interessante como uma prova adicional do que já foi dito: “Que a divindade deva envolver em calamidades inesperadas [considerando-se o enorme poderio bélico ateniense] aqueles que embarcam em uma guerra injusta, e não temperam sua posição elevada com humanidade, é realmente um grande bem”. (3)

Nicolau, é claro, não tem em mente o caos ao proferir tais palavras! Ora, se ele concebe uma regra que se aplica à sucessão dos fenômenos, cai por terra o já citado argumento de Gregory: “[...] não há nenhuma evidência de que haja alguma relação entre o nível da ira de Posídon e a quantidade ou a intensidade do tremor que ele provoca”. (4) Seria cabível até mesmo que pensássemos num esquema abstrato como o seguinte: os homens emitem partículas sinalizadoras (feromônios ou coisas semelhantes) que atingem os sentidos divinos; os deuses então reagem de maneiras condizentes com as partículas emitidas. Em nossa realidade, a indução de chuvas às vezes é feita por meio da queima de cloreto de sódio, com a consequente liberação de uma fumaça que sobe até as nuvens e interage com as gotículas de água.

Gregory não é fiel sequer às afirmações explícitas da filosofia que ele próprio define como inovadora e fundada na compreensão de leis naturais. Julgo oportuna a seguinte apreciação do historiador David Sedley sobre a geologia platônica: “A civilização [...], graças a regularidades celestes combinadas à indisciplina residual do estofo constituinte do mundo, tem um ciclo de vida comparável [...] aos ciclos de vida finitos dos organismos individuais”. (5) Combinação de regularidades e de processos caóticos: peço ao leitor que avalie a compatibilidade entre o domínio incondicional das leis defendido por Gregory e o cenário descrito por Sedley. Levando-se em conta abstratamente os dois traços apontados (o acaso e a necessidade), a geologia platônica corresponde perfeitamente ao nosso mundo real. Cabe explicar que, segundo Platão, a civilização era periodicamente destruída pelo extravasamento dos setores caóticos da matéria, como quando, em nosso mundo, a aleatoriedade quântica poreja e gera efeitos como o câncer e as mutações que alimentam a seleção natural.

Toda a plausibilidade da interpretação de Gregory deriva do fato de que muitas vezes as expectativas dos religiosos são frustradas. Porém, a frustração eventualmente experimentada por um religioso como o siracusano Nicolau é análoga à do físico que fica admirado ao observar que a órbita de Mercúrio não se encaixa no paradigma newtoniano. Evidentemente, seria esdrúxula a hipótese de que os físicos perplexos com a precessão de Mercúrio desconhecem o conceito de lei natural. Devemos notar, inclusive, que a fratura entre os dois paradigmas divergentes mimetiza no plano das ideias a fratura real entre uma regularidade fenomênica e a eclosão de um lusus naturæ. A descoberta da anomalia de Mercúrio (feita por Urbain Le Verrier em 1859) é um lusus naturæ que não se distingue praticamente do surgimento objetivo de uma anomalia com as mesmas características. Tudo se passa como se a curvatura do espaço-tempo (prevista pela relatividade de Einstein) rebentasse abruptamente no próprio tecido da realidade e provocasse o clinâmen da órbita de Mercúrio.

Um crítico recalcitrante poderia ainda insistir que a religião homérica é essencialmente distinta da filosofia pré-socrática. Quanto a mim, talvez eu pudesse acrescentar alguns fatos como os seguintes: a alternância entre dias e noites (a imagem clássica da regularidade natural) deixará de existir quando um Sol moribundo devorar a Terra; a incidência de raios cósmicos pode provocar mutações biológicas absolutamente fortuitas; diversas pesquisas científicas procuram determinar se as orações intercessórias são eficazes; na Antígona de Sófocles, Creonte tem por certo que os deuses jamais honrariam aqueles que cometem atos sacrílegos: “Exatamente quando você viu pela última vez os deuses a celebrar traidores? Inconcebível!”. (6) Os termos postos na boca de Creonte são fortes e indicam claramente a consciência de regularidades.

Por fim, é preciso reconhecer que a ideia de moira diminui ainda mais a distância entre a religião homérica e o universo pré-socrático (um último prego no caixão da tese da revolução milésia). O vocábulo grego moira (“quinhão”, “parte que cabe a cada um”) é geralmente traduzido como “destino”. Lemos na Odisseia: “Pois não é seu destino [de Ulisses] aqui perecer longe de quem ama; determinam os fados que ele reveja parentes e amigos e que regresse a seu alto palácio e à sua terra pátria”. (7) Muitos intérpretes, é verdade, fazem grande caso das passagens dos poemas homéricos em que a moira aparece como friável, como quando Zeus pondera se deveria salvar da morte seu filho Sarpédon; (8) a preocupação desses intérpretes, no entanto, é despropositada. Um processo como o desenvolvimento embrionário, embora possa ser empiricamente robusto (o diamante é o mineral mais duro da escala de Mohs: lembrete da tenacidade relativa dos entes naturais), não é em princípio infenso a perturbações.

Igualmente interessante é o fato de que Homero às vezes transmite a impressão de que nem mesmo os deuses podem escapar à moira: “Há um debate nos estudos homéricos sobre se Zeus é superior ao destino ou não e se o destino em Homero é equivalente à vontade de Zeus”. (9) Ora, a ideia de deuses submetidos a um controle superior e inflexível sugere uma ontologia determinística bastante enfática. Tudo se passa como se o fundo último do real fosse constituído de uma lei superior: uma meta-lei (meta-law), na terminologia do físico americano Lee Smolin. Smolin elabora um cenário que, com a exclusão das injeções pontuais de design inteligente (milagres), parece ser um símile da religião homérica. Com efeito, Smolin sustenta que as leis naturais não são imutáveis – elas evoluem por meio de um processo cósmico de seleção natural (as mutações, aliás, ocorrem no caos quântico dos buracos negros). O problema, no entanto, é que o processo evolutivo seria governado por uma meta-lei. (10)

De resto, o próprio Gregory admite que a moira homérica é uma das bases do conceito pré-socrático de lei natural:

A ideia da moira que regula a relação entre os deuses e os homens pode ser importante para as primeiras ideias de leis naturais. Eu concordaria fortemente com a alegação de que há ideias pré-milésias que ajudaram a levar à ideia de leis naturais – do contrário a ideia parece vir do nada e nós acabamos com um milagre grego que nada explica! (11)

A declaração de Gregory é instrutiva por pelo menos duas razões: em primeiro lugar, Gregory dá a entender que, para ele, a ordem (estrutura) é um traço irredutível da realidade. (A ordem, para usar um termo pré-socrático, é a arché: o princípio de tudo o que existe.) A rejeição dos milagres, com efeito, pode ser compreendida igualmente como uma rejeição dos lusus naturæ (não necessariamente; porém, quando levamos em conta outras declarações de Gregory, a interpretação que proponho adquire probabilidade (12) ). Agora, ao sustentar que a ordem é um traço cósmico nativo, Gregory é obrigado a aderir a alguma modalidade de teleologia imanente (o organicismo ou o hilozoísmo). A explicação é muito simples: não há ateísmo científico sem a dissolução da ordem no estrato cósmico primordial.

Em segundo lugar, Gregory contradiz a si mesmo. Ao mesmo tempo em que afirma a continuidade entre a religião homérica e o pensamento milésio, ele engrandece a diferença, como se, de algum modo misterioso, o conceito de moira já não contivesse em si uma compreensão do conceito de regularidade. Pior ainda, a cosmologia do pré-socrático Demócrito é mais casualista (ou irregular) do que a teologia homérica. Para Demócrito, o determinismo só é visível na escala cósmica do infinito. Nos quadrantes mais restritos (por exemplo, na porção do Universo que habitamos), o acaso é o fator que explica a gênese dos mundos e dos seres vivos.

Não é verdade, portanto, que os pré-socráticos emergem como os primeiros filósofos e sequer como os primeiros proponentes de leis naturais. Resta analisar os outros caracteres comumente atribuídos aos pré-socráticos. É impressionante a quantidade de preconceitos que viciam nossa compreensão desses filósofos (porém, algum segmento da história das ideias está livre de interpretações preconceituosas?). Muitos dizem que, com Sócrates, a tendência cosmológica do pensamento pré-socrático foi substituída por uma tendência ética – um erro crasso. Há corpulentas reflexões éticas nos pitagóricos e em Empédocles (purificação da alma por meio do vegetarianismo e da negação da violência); Demócrito e Protágoras desenvolveram teorias sobre a origem da cultura humana; o Fragmento de Sísifo (provavelmente da autoria de Crítias) é uma formidável reflexão sobre a origem moral da crença nos deuses. Ao mesmo tempo, Sócrates, Platão e Aristóteles elaboraram cosmologias cuja riqueza ofusca tudo o que sabemos sobre os pré-socráticos.

Outros adoram dizer que o monismo (Anaximandro e Anaxímenes sustentaram que tudo é modificação de uma matéria fundamental) é extremamente significativo no contexto pré-socrático, deixando de observar que o monismo é um traço contingente de qualquer essência que possa ser atribuída aos pensadores do período. Na verdade, o dualismo e o pluralismo deveriam ser vistos como igualmente constitutivos de uma hipotética essência pré-socrática: Anaxágoras dividiu a realidade em duas entidades discretas (inteligência e matéria), Empédocles defendeu a existência de seis substâncias irredutíveis (ar, água, terra, fogo, amor e ódio), Demócrito conservou os deuses antropomórficos da religião tradicional (é um requinte tolo a alegação de que tais deuses são feitos de átomos, sobretudo quando lembramos que Homero e Hesíodo jamais conceberam deuses incorpóreos): além dos átomos e do vazio, duas realidades irredutíveis, “Demócrito aparentemente admitiu, no âmbito das restrições de seu atomismo, um papel para seres divinos propensos a prejudicar e também beneficiar os homens”. (13) Nem mesmo a gênese hídrica de Tales, famoso cartão-postal do pensamento pré-socrático, é particularmente expressiva: em Homero encontramos a seguinte proposição: “Oceano, origem dos deuses”. (14)

De acordo com uma das interpretações mais comuns, os pré-socráticos forneceram os materiais brutos para que Platão e Aristóteles compusessem suas sínteses. O mobilismo desbragado de Heráclito (nada é constante) é combinado com o imobilismo de Parmênides (toda mudança é ilusória). Platão aparece com a teoria dos mundos sensível e inteligível; Aristóteles, com a doutrina da substância e a distinção entre ato e potência. Os pré-socráticos, logicamente, não passariam de uma escada que conduz às iluminações dos grandes mestres do Ocidente.

Considero que “ontologismo” seja um nome apropriado para essa tendência filosófica. Por “ontologismo” entendo a preocupação com o conhecimento da natureza íntima da realidade, conhecimento este que inclui uma resposta exaustiva ao problema da natureza da mente e de sua relação com o corpo. Ainda quando não recobre perfeitamente a teoria aristotélica da substância e conceitos análogos, o ontologismo comporta todas as interrogações sobre a constituição última das coisas. O físico Lee Smolin expressa da seguinte maneira a preocupação ontologista: “Às vezes eu penso sobre o que uma rocha é quando tento dormir, e conforto-me com a ideia de que deve haver, em algum lugar, uma resposta à pergunta sobre o que o Universo é”. (15)

No que me diz respeito, julgo que há modos mais profícuos de se edificar uma cosmovisão penetrante, ainda que, como Smolin, eu muitas vezes medite sobre a intimidade ontológica das rochas. Eu tenho em mente, é claro, a defesa do ateísmo científico. Para os interessados no tema, é necessário que a recusa do ontologismo apareça revestida de uma pertinência especial. O motivo é que a afirmação do ateísmo sequer é possível sem que o substrato cósmico primordial seja colocado entre parênteses. Questão sumamente técnica: a cosmogênese quântica vem envolta numa colcha de determinações ontológicas de dificílima elucidação. Decerto, a cosmogênese quântica ocorreu; entendemos em linhas gerais seu caráter. Porém, a cosmologia materialista emperra quando se dispõe a penetrar seus arredores (uma esfera surge ex nihilo no espaço – precisamos desvendar a natureza íntima do espaço para reconhecer que um surgimento ex nihilo é relevante para o ateísmo?). Não admira assim que os religionistas procurem tirar partido do ontologismo.

Felizmente, a interpretação ontologista da filosofia pré-socrática não é a única possível. Há material abundante fora da controvérsia sobre o mobilismo. Veremos no próximo texto que os primeiros ateus da tradição ocidental apresentam argumentos que ignoram as preocupações ontologistas. Ainda assim, seria possível dizer que o ateísmo científico não se configura como uma ontologia profunda? O paradoxo é apenas aparente. O que primeiro chamou minha atenção para a falsidade desse paradoxo foi a leitura de Schopenhauer. Com sua metafísica da vontade, Schopenhauer pretende pesquisar a constituição interna da própria superfície fenomênica, abstendo-se de buscar o conhecimento do cerne da realidade. Assim como a rica estrutura molecular de uma bolha de sabão, a película fenomênica tem uma espessura ontológica. Nas palavras de Schopenhauer, “[...] esta filosofia não presume explicar a existência do mundo a partir de seus fundamentos últimos. Ao contrário, ela atém-se aos fatos reais das experiências interna e externa”. (16)

Eu não defendo a filosofia de Schopenhauer. Mesmo que eu enxergue algumas semelhanças entre a vontade metafísica e o gene egoísta (aliás, a contraposição entre fenótipo e genótipo é um delicioso exemplo de metafísica empírica à la Schopenhauer), e mesmo que hoje o idealismo seja advogado por filósofos muito hábeis, eu retenho de Schopenhauer apenas um esquema abstrato que me permite conciliar a recusa do ontologismo com a formulação de uma metafísica penetrante.

George Novack: marxista, inepto, simplório. Um belo exemplo da historiografia que privilegia a interpretação ontologista dos pré-socráticos. Novack enumera os traços mais essenciais (mais abstratos ou genéricos) da substância e dá a tarefa por encerrada. “A água de Tales é uma substância corpórea, logo Tales é materialista”. Que simplicidade comovente! Segundo Novack, “Entre o deus Oceano como o pai primordial [referência a Homero] e a água, a coisa física, como a base da explicação [referência a Tales], está a mudança decisiva do animismo para o materialismo, da religião para a filosofia”. (17) Uma prova adicional da inépcia de Novack é o fato de que ele classifica como materialista a filogênese de Anaximandro, um processo que provavelmente foi inspirado na ontogênese dos insetos tricópteros. (18)

Novack, em suma, contenta-se em fundar o materialismo no conceito de corpo, como se a mera afirmação do corporeísmo bastasse para que um filósofo fosse considerado materialista. Ora, o litmus test para que possamos averiguar o materialismo de um filósofo parece ser o modo como ele concebe a cosmogênese e a filogênese. Pois bem, uma filogênese concebida segundo o modelo embriológico é uma boa opção materialista? O ridículo da interpretação de Novack é facilmente demonstrado por meio de um exame sumário da teologia estoica. Além de acreditarem num Deus corpóreo, os estoicos foram os maiores proponentes da teoria do design inteligente na Antiguidade (o mundo era estruturado por um vapor sutil e inteligente).

A água de Tales também tinha poderes psíquicos irredutíveis. Daniel Graham, um intérprete muito mais erudito e perspicaz do que Novack, explica:

A substância geradora é associada com a vitalidade e com a inteligência e, portanto, com a autonomia ou com o poder de governar; assim, o ilimitado de Anaximandro e o ar de Anaxímenes são dotados de entendimento. A substância geradora torna-se assim não somente a substância original, mas a substância que governa a ordem natural. (19)

Cumpre observar também que, de acordo com João Filopono (século 6 EC), Tales teria dito “que a providência estende-se aos extremos e nada escapa à sua percepção, nem mesmo a menor coisa”. (20) Dificilmente uma proposição materialista! E ainda que se queira pensar que Tales provavelmente concebeu um esquema evolucionista semelhante ao de Anaximandro, teríamos razão em supor que o materialismo é compatível com uma filogênese que imita o desenvolvimento embrionário?

Não importa a constituição íntima da matéria, e sim como ela poreja no mundo real. Se a Terra fosse um superorganismo, a vida seria uma propriedade essencial da realidade. No entanto, diante de um organismo qualquer, podemos olhar para uma de suas partes e observar uma calcificação patológica. Com alguma sorte, podemos observar a geração espontânea de vermes em seus intestinos (eu proponho aqui apenas uma ilustração pedagógica, e não uma adesão à teoria da geração espontânea). O depósito de cálcio e as gerações espontâneas, como parece evidente, representam a irrupção do caótico – o porejamento da matéria. A matéria que poreja na forma desses fenômenos é aquela que verdadeiramente merece o nome de “matéria”. Matéria marginal, tão periférica quanto a película fenomênica de Schopenhauer. Extravasamento que se desenha na orla da substância. Não obstante, ocorrência repleta de pertinência ontológica.

A ontologia marginal está para o ontologismo assim como uma calcificação está para a totalidade orgânica. Imagine que todos os átomos do Universo são seres pensantes. Imagine que cada átomo tem até mesmo uma vida mental bastante rica. Em seguida, pense no estado caótico das moléculas de um gás. A imagem ora descrita contém a essência de minha crítica ao ontologismo, bem como a essência de minha aposta numa ontologia marginal. A propósito, ainda que saibamos que o Universo emergiu do caos quântico, não conhecemos a intimidade dos momentos cósmicos mais recuados. A compreensão da época de Planck (o caos primordial) requer uma teoria, ainda indisponível, que combina a mecânica quântica com a teoria geral da relatividade.

Muito se falou da água de Tales, do ilimitado de Anaximandro, dos números de Pitágoras, dos átomos de Demócrito. Muito se falou dos modos como Platão e Aristóteles sintetizaram o mobilismo de Heráclito com o imobilismo de Parmênides. Ao mesmo tempo, personagens como Sófocles, Eurípides e Empédocles (não me refiro ao Empédocles ontologista, mas ao pai da teoria da seleção natural) viram-se relegados a um plano secundário. O ponto a ser ressaltado é justamente o fato de que tais pensadores desenvolveram um conceito de matéria às margens do ontologismo. Com base nas intuições exploradas por eles, depreendemos que a matéria é uma coisa extensa que opera mecanicamente. Sobretudo, depreendemos que a matéria não é responsável por nenhum ordenamento providencial do mundo. Trata-se de uma enumeração frugal de atributos (extensão e comportamento não providencial), o que significa que ignoramos uma série de atributos que, se justificados, comporiam uma teoria ontologista da matéria: aquilo que ocupa os pensamentos de Smolin antes dele adormecer.


Bibliografia

DIODORUS SICULUS. The Persian Wars to the Fall of Athens. Austin: University of Texas Press, 2010.

GERICKE, J. Can God Exist if Yahweh Doesn’t? In: LOFTUS, J. (ed.). The End of Christianity. Amherst: Prometheus, 2011.

GRAHAM, D. W. Explaining the Cosmos: The Ionian Tradition of Scientific Philosophy. Princeton: Princeton University Press, 2006.

GREGORY, A. The Presocratics and the Supernatural. Londres: Bloomsbury, 2013.

______. Early Greek Philosophies of Nature. Londres: Bloomsbury, 2020.

HOMERO. Odisseia. São Paulo: Penguin, 2011.

______. Ilíada. São Paulo: Penguin, 2013.

NOVACK, G. The Origins of Materialism. Nova York: Pathfinder Press, 1965.

PARKER, R. On Greek Religion. Ithaca: Cornell University Press, 2011.

SCHOPENHAUER, A. The World as Will and Representation. Volume II. Nova York: Dover, 1966.

SEDLEY, D. Creationism and Its Critics in Antiquity. Berkeley: University of California Press, 2007.

SMOLIN, L. Time Reborn. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2013.

SÓFOCLES. The Three Theban Plays. Nova York: Penguin, 1982.


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) On Greek Religion, p. 4.

(2) Can God Exist if Yahweh Doesn’t?, p. 151.

(3) DIODORUS SICULUS, The Persian Wars to the Fall of Athens, Livro 13, p. 181.

(4) Early Greek Philosophies of Nature, p. 50.

(5) Creationism and Its Critics in Antiquity, p. 119-120.

(6) Antigone, p. 73.

(7) HOMERO, Odisseia, Canto V, p. 198.

(8) Ilíada, Canto XVI, p. 474.

(9) GREGORY, Early Greek Philosophies of Nature, p. 36.

(10) SMOLIN, Time Reborn, p. 242-243.

(11) GREGORY, A. Presocratics and Nature. Destinatário: Giuliano Tommasini Casagrande. [S. l.], 25 fevereiro 2025. 1 mensagem eletrônica.

(12) A importância do acaso na história das ideias não deveria ser ignorada. Um exemplo: a redescoberta do materialismo lucreciano na modernidade dependeu de um evento genuinamente casual: a preservação de uma cópia de De rerum natura num mosteiro alemão e a subsequente recuperação do manuscrito por Poggio Bracciolini em 1417. No entanto, podemos corroborar de outro modo a antipatia de Gregory pelos lusus naturæ: vimos acima que Gregory não se sente confortável com as explicações genéticas baseadas em “acontecimentos singulares”. Cf. The Presocratics and the Supernatural, p. 63.

(13) SEDLEY, Creationism and Its Critics in Antiquity, p. 134.

(14) Ilíada, Canto XIV, p. 419.

(15) Time Reborn, p. 266.

(16) The World as Will and Representation. Volume II, p. 640.

(17) The Origins of Materialism, p. 87.

(18) Ibid.

(19) Explaining the Cosmos: The Ionian Tradition of Scientific Philosophy, p. 107.

(20) Apud SEDLEY, Creationism and Its Critics in Antiquity, p. 7, nota 21.