28/01/2012

A bíblia e a ciência


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Colocação do problema

A bíblia, o texto sagrado de judeus e cristãos, é considerada pelos crentes uma obra inspirada por um Deus sobrenatural. De acordo com o apóstolo Paulo, “Toda a Escritura é divinamente inspirada” (2 Timóteo 3:16); o apóstolo Pedro corrobora as palavras de Paulo: “Porque a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo” (2 Pedro 1:21). Mas a tese da inspiração divina seria racionalmente sustentável? Quais indícios objetivos poderiam atestá-la? A questão que se coloca é simples e clara: a bíblia é a palavra de Deus ou a palavra de alguns homens? Há algo na bíblia que não possa ter saído do cérebro de seres humanos da época? Com efeito, conhecemos o autor através de suas obras. A resposta à questão colocada deverá ser obtida por meio de um exame intelectual e objetivo, e não por meio de considerações sentimentais. Não pretendemos analisar a atitude psicológica e irracional da grande massa dos crentes atuais, segundo a qual “a bíblia contém boas mensagens; portanto, ela só poderia vir de Deus (entendido de maneira mais ou menos consciente como o ideal subjetivo de bondade e de beleza)”; o mesmo “raciocínio” é aplicado à música de Bach e a outras obras consideradas “divinamente inspiradas” pelo julgamento popular. O léxico, por sinal, registra o adjetivo “divino” com o significado de “maravilhoso”, “sublime”, “perfeito”, como quando dizemos que uma comida é “divina”. É óbvio que o conceito de “inspiração divina” com que lidamos neste texto não é o conceito relaxado da mentalidade popular. O conceito teológico rigoroso de “verdade revelada” supõe a intervenção concreta (empírica) de Deus no espaço e no tempo, com a finalidade de comunicação: um milagre, ou seja, uma violação das leis da natureza com um objetivo específico. Somente este conceito nos interessa. De qualquer forma, temos consciência do fato de que, para a maioria dos crentes, a adesão a uma forma de religião ocorre em decorrência de motivações emocionais e de hábitos psicológicos. Evidentemente, tal atitude é completamente irrelevante para o exame objetivo e racional das crenças religiosas.


A bíblia contém conhecimentos sobrenaturais (revelados por Deus)?

Alguns apologetas costumam afirmar que a bíblia contém assombrosas predições científicas, e que tal conhecimento extraordinário seria uma prova de sua origem divina. De acordo com eles, por exemplo, a bíblia descreve corretamente o processo de evaporação da água: “Faz subir os vapores das extremidades da terra; faz os relâmpagos para a chuva; tira os ventos dos seus tesouros” (Salmo 135:7); de condensação da água: “Prende as águas nas suas nuvens, todavia a nuvem não se rasga debaixo delas” (Jó 26:8); menciona dinossauros: os monstros Beemote (Jó 40:15-24) e Leviatã (Jó 41:1-34); contêm conhecimentos fisiológicos acurados: “Porque a vida da carne está no sangue; pelo que vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pelas vossas almas; porquanto é o sangue que fará expiação pela alma” (Levítico 17:11); menciona o formato esferoide da terra: “Ele é o que está assentado sobre o círculo da terra, cujos moradores são para ele como gafanhotos; é ele o que estende os céus como cortina, e os desenrola como tenda, para neles habitar” (Isaías 40:22), etc.

Meia dúzia de palavras esparsas e ambíguas sobre eventos e seres da natureza; observações de fenômenos do cotidiano que poderiam ser levadas a cabo até mesmo por crianças: eis a suma do conhecimento científico que os apologetas creem encontrar na bíblia. Nada que não pudesse ser obtido pelo conhecimento humano ordinário da época. Nada, portanto, que sirva como prova de uma origem sobrenatural. Os filósofos da Antiguidade, com efeito, forneceram intuições científicas bem mais impressionantes, inequívocas e geniais. É o caso do materialista romano Tito Lucrécio Caro, que viveu entre 96 e 55 a.C. e foi autor do poema epicurista “Sobre a natureza das coisas”. Nesta obra, encontramos, como parte de uma cornucópia de teorizações científicas impressionantes, a antecipação da teoria da evolução por seleção natural (formulada por Darwin no século XIX), exposta de maneira clara e precisa pelo filósofo antigo. Na passagem a seguir, Lucrécio fala da geração de mutações malsucedidas, incapazes de auxiliar seus portadores na luta pela sobrevivência:

Foi nessa altura [no início] que a Terra tentou criar numerosos monstros de estranho aspecto e membros, por exemplo, o andrógino, intermediário entre os dois sexos... e os seres que não tinham pés ou que não tinham mãos, e também os que não tinham boca e eram mudos e os que se encontravam cegos e sem face e os que tinham os membros inteiramente presos ao corpo e não podiam fazer coisa alguma, nem andar nem evitar o mal nem apanhar aquilo que seria útil [devido à ausência de adaptações] (1973, p. 115).

Lucrécio prossegue e afirma que as mutações malsucedidas foram eliminadas posteriormente por uma seleção natural de características vantajosas às espécies:

Tiveram então que desaparecer muitas raças de seres vivos que não puderam, reproduzindo-se, dar origem a uma descendência. Todas aquelas que vês se alimentarem das auras vitais têm, ou a manha [habilidade], ou a força, ou então a mobilidade que, desde o princípio, protegeram a raça e a conservaram (Ibid.).

Comparemos o texto do filósofo romano com as migalhas de sabedoria fornecidas pelos profetas judaicos. Não somos injustos? Em seguida, Lucrécio especula sobre a ascensão do ser humano a partir de um estado primitivo, e fornece a seguinte descrição da compleição física dos progenitores da raça humana:

A raça humana que houve naqueles campos foi muito mais dura, como era natural, dado que a tinha criado uma dura terra; tinha como fundamento ossos maiores e mais sólidos e as carnes estavam ligadas por fortes nervos, de modo que nem os impressionava [abalava] facilmente ou o calor ou o frio ou a novidade da comida ou qualquer das ruínas do corpo (Ibid., p. 116).

A descrição de Lucrécio pode ser facilmente comparada às descrições do homem de Neanderthal fornecidas pela ciência moderna. Lucrécio, é evidente, era um filósofo, e não um visionário ou profeta. Sua sabedoria mundana, a filosofia, como obra do intelecto natural, levou-o a teorizações de extraordinário valor. Repito: Lucrécio era apenas um filósofo: um homem que raciocinava sobre o mundo. Imaginemos o escarcéu que seria feito pelos crentes se intuições tão poderosas fossem encontradas nas escrituras sagradas de alguma religião! Por muito menos os apologetas acreditaram que seus livros sagrados foram inspirados por uma divindade onisciente. Umas duas palavras ingênuas sobre a chuva, outras palavras ambíguas sobre o “círculo da terra”... Se a bíblia é considerada um livro inspirado por Deus, ela deveria conter sinais que o comprovassem. O autor é revelado em sua obra. Mas o que encontramos nela? Sinais de uma origem mundana, humana, natural. Nada que não seja encontrado, de maneira mais excelente, em escritores mundanos como Platão, Aristóteles, Galeno, Lucrécio...

A bíblia afirma, numa das passagens mais citadas pelos defensores de sua pertinência científica, que Deus “suspende a terra sobre o nada” (Jó 26:7). Para muitos apologetas, tais palavras obscuras e poéticas seriam mais uma prova da inspiração divina da bíblia e conteriam uma verdade confirmada pelo conhecimento astronômico posterior. Ora, como já mostramos, não há nenhum conhecimento neste versículo que não possa ter sido concebido pela mentalidade humana da época (fato provado pelas tradições sagradas de outras religiões e pelas obras filosóficas da mesma época, repletas de “insights” e especulações equivalentes ou superiores). E o próprio texto de Jó contém passagens derrogatórias que afirmam que a terra é provida de “fundamentos” e “bases” (38:4-6), passagens que contradizem a afirmação de que a terra está suspensa sobre o nada. Em Jó ainda lemos que o céu é sustentado por colunas (26:11). Assim como as comunicações mediúnicas e os relatos de supostos abduzidos por extraterrestres, o texto bíblico nada contém que não possa ter sido produzido pela humanidade da terra (por que médiuns não psicografam tratados de física de cientistas “desencarnados”, mas apenas homilias que poderiam ser escritas por crianças? Por que supostos abduzidos não trazem informações conformes ao elevado nível intelectual de seus raptores intergalácticos, mas apenas comunicados tolos sobre a iminência de uma nova era da evolução terrena?). O mesmo capítulo de Jó declara que Deus “com sua força fendeu o mar; com o seu entendimento abateu a Raabe [ou Tiamat]” (26:12), monstro marinho da mitologia babilônica. Em outras palavras, o livro “inspirado sobrenaturalmente” afirma que Deus abateu uma criatura marinha da mitologia de povos vizinhos... Se uma referência a um evento lendário inverossímil aparece no mesmo capítulo que contém o versículo sobre a suspensão da terra no nada, por que deveríamos afirmar que sua correção científica foi obra da inspiração divina?


A bíblia foi confirmada pela ciência moderna?

Como se não bastasse sua insignificância epistemológica, a bíblia contém numerosas asserções incompatíveis com o conhecimento científico. Vejamos alguns exemplos. Para os escritores bíblicos, o sol gira em torno da terra; num episódio do livro de Josué, ocorre um milagre no qual o sol se detém (10:13); a mesma noção aparece em Salmos 19:4-6. Alguns apologetas obstinados poderão dizer que Josué falava somente do movimento aparente do sol, manobra exegética que se apóia num argumento ad hoc forçado e antinatural. Com efeito, o que seria mais provável? Que um escritor da Antiguidade julgasse (como os sábios gregos Ptolomeu e Aristóteles), de acordo com o senso comum da época, que a terra era o centro do universo, ou que o povo judeu recebesse instruções de um ser divino? No caso da segunda hipótese, onde estão os sinais objetivos que comprovam tal instrução? A afirmação do geocentrismo, com efeito, é um sinal da origem mundana (natural) dos textos bíblicos. Sua presença em textos antigos é plenamente explicada pelo estágio do desenvolvimento científico dos povos que os escreveram.

A narrativa criacionista do primeiro capítulo de Gênesis compreende um período de meros seis dias. Aqui, a palavra “dia” (“yom”) aparece em imediata conjunção com as palavras “noite”, “tarde” e “manhã” (“E chamou Deus à luz dia, e às trevas, noite. E houve tarde e manhã – o primeiro dia”), fato que invalida a exegese tendenciosa dos apologetas que desejam salvar o discurso bíblico a qualquer custo, segundo os quais a palavra “dia”, na verdade, seria uma alegoria para um vastíssimo período de tempo, conforme o conhecimento geológico moderno. Se um “dia” equivalesse a milhões de anos, os períodos conhecidos como “manhã”, “tarde” e “noite” também durariam milhões de anos, o que é absurdo. Todos sabemos que as partes do dia (manhã, tarde e noite) estão contidas em um período de 24 horas. Contraria todas as normas da boa exegese a tentativa de forçar noções modernas para dentro do universo do texto bíblico. Na leitura de qualquer texto pagão, os apologetas cristãos não teriam nenhuma dificuldade para admitir que os autores simplesmente estavam errados, e que portanto não receberam ensinamentos de uma divindade perfeita. Mas, no caso da bíblia, os apologetas (como advogados de uma “religião doméstica” necessariamente isenta de erros) sentem-se no direito de lançar mão de expedientes alegóricos temerários para conciliar a escritura sagrada com o progresso da ciência. Mais uma vez, a bíblia nada contém que exija o reconhecimento de uma revelação sobrenatural.

A bíblia implica que o universo tem cerca de apenas 6000 anos, cifra obtida a partir da contagem das gerações das genealogias, de Adão a Jesus (4000 anos das genealogias bíblicas + 2000 anos). No entanto, há estrelas situadas a bilhões de anos-luz da terra, de modo que a luz proveniente delas levou bilhões de anos para chegar até nossos olhos ou instrumentos ópticos. A crença bíblica numa terra jovem, longe de indicar uma revelação divina, está em plena conformidade com a mentalidade pré-científica dos autores das escrituras sagradas.

De acordo com o Gênesis, a terra foi criada antes do sol, da lua e das estrelas: com efeito, lemos que a terra é criada no primeiro dia, e que o sol, a lua e as estrelas são criados somente no quarto dia (1:1-16). Na realidade, a terra formou-se oito bilhões de anos depois das primeiras estrelas. Mais uma vez, a bíblia ostenta sinais de uma origem mundana (natural). Com efeito, por que os escritores bíblicos, homens comuns da Antiguidade, seriam obrigados a conhecer as profundidades da astronomia? Não seria infinitamente mais sensato atribuir o texto bíblico à mentalidade humana de uma certa época, em vez de atribuí-lo ao desejo de um Deus de comunicar-se com a raça humana?

Conforme a bíblia, doenças são causadas pelo pecado, e não por mecanismos naturais: “E vieram ter com ele conduzindo um paralítico, trazido por quatro. E, não podendo aproximar-se dele, por causa da multidão, descobriram o telhado onde estava, e, fazendo um buraco, baixaram o leito em que jazia o paralítico. E Jesus, vendo a fé deles, disse ao paralítico: Filho, perdoados estão os teus pecados” (Marcos 2:3-5). Num outro episódio narrado no quarto evangelho, a conexão entre as doenças e o pecado é novamente estabelecida: “Logo aquele homem ficou são; e tomou o seu leito, e andava. E aquele dia era sábado. Então os judeus disseram àquele que tinha sido curado: É sábado, não te é lícito levar o leito. Ele respondeu-lhes: Aquele que me curou, ele próprio disse: Toma o teu leito, e anda. Perguntaram-lhe, pois: Quem é o homem que te disse: Toma o teu leito, e anda? E o que fora curado não sabia quem era; porque Jesus se havia retirado, em razão de naquele lugar haver grande multidão. Depois Jesus encontrou-o no templo, e disse-lhe: Eis que já estás são; não peques mais, para que não te suceda alguma coisa pior” (João 5:9-14). Ademais, Jesus atribui enfermidades a possessões demoníacas: “E, chegada a tarde, trouxeram-lhe muitos endemoninhados, e ele com a sua palavra expulsou deles os espíritos, e curou todos os que estavam enfermos” (Mateus 8:16). Uma série de questões graves é colocada pelos episódios narrados nos evangelhos: plantas e animais seriam pecadores? Eles não estão sujeitos ao adoecimento (como um fenômeno decorrente de causas naturais)? Conhecemos a resposta dos apologetas obstinados: o pecado foi introduzido no mundo pelo homem, no episódio da queda de Adão e Eva. O que dizer, então, das doenças que acometiam os seres vivos que já existiam antes do surgimento do Homo sapiens? Calcula-se que 99% das espécies de animais que já existiram no planeta terra (desde os primórdios da vida) foram extintas. Diversos estudos paleontológicos apontam a existência de enfermidades letais em espécies extintas milhões de anos antes da existência humana na terra. Animais pré-históricos também morriam de câncer: há ossos fossilizados de dinossauros que apresentam tumores. Mais um exemplo que mostra o quanto o conhecimento científico (de origem completamente mundana) é superior ao conhecimento pretensamente sobrenatural da bíblia.

As numerosas profecias contidas na bíblia poderiam servir como prova de uma inspiração divina. O apologeta cristão Tim LaHaye afirma que

Mais de um quarto do conteúdo da Bíblia foi profético no momento em que foi originalmente escrito. Até o momento, mais da metade dessas mais de mil profecias se realizaram até os mínimos detalhes... É irônico e infeliz que vários professores da Bíblia, nos últimos anos, foram incapazes de reconhecer a inegável importância da profecia, principalmente quando se percebe que as profecias realizadas validam a própria Bíblia. Como todas as profecias bíblicas realizadas se provaram meticulosamente precisas através dos séculos, é plenamente razoável acreditar que as outras coisas tratadas na Bíblia – como os atributos de Deus, coisas específicas sobre a criação e a existência do céu e do inferno – também são 100% precisas. Também fica evidente que o conteúdo da Bíblia não foi escrito pelo homem, mas tem suas origens fora de nosso continuum espaço-tempo, porque registra a história antes de ela acontecer. Na essência, a profecia é a história escrita antecipadamente (2009, pp. 45-46; grifos do autor).

A realidade, infelizmente, desmente as declarações peremptórias de LaHaye. Alguns exemplos são bastante eloquentes. Isaías prediz a destruição da cidade de Damasco (capital da Síria): “Peso de Damasco. Eis que Damasco será tirada, e já não será cidade, antes será um montão de ruínas” (17:1). Damasco, no entanto, continua a existir até hoje. De acordo com uma profecia de Zacarias, “todas as profundezas do Nilo se secarão” (10:11), evento que jamais se confirmou. Segundo Ezequiel 29, o Egito seria devastado por Nabucodonosor, e sua destruição duraria quarenta anos; a história real do Egito desmente as predições de Ezequiel. Os escritores neotestamentários, por seu turno, oferecem exemplos picarescos de supostos cumprimentos de profecias. Mateus afirma que o episódio da saída de Jesus do Egito (ocorrido após a fuga para este país) é uma confirmação de uma profecia do Antigo Testamento: “E, tendo eles se retirado, eis que o anjo do Senhor apareceu a José em sonhos, dizendo: Levanta-te, e toma o menino e sua mãe, e foge para o Egito, e demora-te lá até que eu te diga; porque Herodes há de procurar o menino para o matar. E, levantando-se ele, tomou o menino e sua mãe, de noite, e foi para o Egito. E esteve lá, até à morte de Herodes, para que se cumprisse o que foi dito da parte do Senhor pelo profeta, que diz: Do Egito chamei o meu Filho” (2:13-15). “Do Egito chamei o meu Filho”; o profeta a que se refere Mateus é Oseias, autor da seguinte frase: “Quando Israel era menino, eu o amei; e do Egito chamei a meu filho” (11:1). No entanto, a frase de Oseias não se refere a um indivíduo (Jesus), mas ao povo de Israel como um todo, libertado outrora do cativeiro egípcio por Jeová. O sentido claro e original das palavras de Oseias não foi um empecilho para a adulteração desavergonhada de Mateus. Ainda de acordo com os evangelhos sinóticos, Jesus declara a seus discípulos que seu retorno e o estabelecimento de seu reino ocorrerão no espaço de tempo de uma geração, antes da morte daqueles que o acompanham: “Porque o Filho do homem virá na glória de seu Pai, com os seus anjos; e então dará a cada um segundo as suas obras. Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui estão, que não provarão a morte até que vejam vir o Filho do homem no seu reino” (Mateus 16:27-28). Em outro capítulo de Mateus, Jesus relata uma série de eventos que deverão ocorrer no dia do Juízo Final e acrescenta: “Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que todas estas coisas aconteçam” (24:34). Segundo Marcos, Jesus “Dizia-lhes também: Em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte sem que vejam chegado o reino de Deus com poder” (9:1). Pois bem: a segunda volta de Jesus não ocorreu até agora. Se a bíblia de fato apresentasse uma profecia minuciosa, precisa e bem-escrita, algo como: “No primeiro decênio do terceiro milênio, um homem de pele escura chegará ao posto de dirigente da maior nação do planeta”, e se pudéssemos verificar seu cumprimento, então seríamos obrigados a levar a sério a hipótese de uma inspiração divina. No entanto, o que ela nos oferece? Predições que causam embaraço até mesmo no exegeta mais caridoso?


Conclusão

Conhecemos um autor através de suas obras. Necessitamos de sinais adequados para estabelecer com segurança a origem de um determinado artefato. Vimos que a bíblia ostenta somente sinais de uma origem mundana (natural). Ela é desprovida de qualquer informação que não possa ser atribuída a seres humanos da época. As obras de filósofos antigos (homens guiados somente pela razão natural) contêm ideias científicas bem mais impressionantes e inequívocas. Além disso, a bíblia apresenta inúmeras passagens que contradizem o conhecimento científico. Como mostra Ernest Renan, o povo judeu antigo jamais foi um povo filosófico. O conhecimento exibido pela bíblia está em completa conformidade com o caráter intelectual deste povo da Antiguidade. Aproximadamente na mesma época em que Jesus realizava exorcismos e atribuía enfermidades ao pecado, o médico grego Hipócrates lançava as bases da medicina científica (baseada na razão e na experiência), e o materialista Epicuro desencantava a natureza ao propor explicações naturais para fenômenos naturais. Renan explica que Jesus ignorava completamente

a ideia nova, criada pela ciência grega, base de toda filosofia e que a ciência moderna confirmou grandiosamente, a saber, a exclusão dos deuses caprichosos aos quais a crença ingênua das eras antigas atribuía o governo do universo. Quase um século antes dele, Lucrécio havia exprimido de uma maneira admirável a inflexibilidade do regime geral da natureza [as leis naturais]. A negação da existência de milagres, a ideia de que tudo é produzido no mundo por meio de leis onde a intervenção pessoal de seres superiores não tem parte alguma, era de direito comum nas grandes escolas de todos os países que haviam recebido a ciência grega. Talvez até mesmo a Babilônia e a Pérsia não fossem estranhas a esta ideia. Jesus nada conheceu acerca de tal progresso. Ainda que nascido numa época no qual o princípio da ciência positiva já havia sido proclamado [sobretudo pelos atomistas Epicuro e Lucrécio], ele viveu em pleno sobrenatural... Jesus em nada diferia de seus compatriotas. Ele acreditava no diabo, que ele considerava uma espécie de gênio do mal, e ele imaginava, como todo mundo, que as doenças nervosas eram causadas por demônios, que se apoderavam do paciente e o agitavam. O maravilhoso [sobrenatural] não era para ele o excepcional; era o estado normal. A noção do sobrenatural, com suas impossibilidades, surge somente no dia em que nasce a ciência experimental da natureza. O homem estranho a toda ideia da ciência física, que acredita que, por meio de preces, ele altera o percurso das nuvens, faz cessar a enfermidade e até mesmo a morte, não encontra no milagre nada de extraordinário, já que o curso inteiro das coisas é para ele o resultado das vontades livres da divindade. Tal estado intelectual foi sempre o de Jesus (1863, pp. 40-41).

O descompasso entre a mentalidade judaica dos tempos bíblicos e as noções científicas da mesma época é flagrante. Jesus e os profetas do Antigo Testamento conceberam uma divindade proporcional às dimensões de seus intelectos. Mas a mente de um Deus sobrenatural não poderia ser equiparada à mente pré-científica do povo judeu da Antiguidade. O livro sagrado de judeus e cristãos, portanto, não pode ser considerado a palavra de uma divindade sobrenatural. Assim como as profecias de Nostradamus e os horóscopos não merecem nosso crédito, as profecias e as supostas predições científicas da bíblia não poderiam validar a hipótese de uma origem sobrenatural.


Bibliografia

LAHAYE, T. Jesus. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2009.

LUCRÉCIO. Da natureza. São Paulo: Abril, 1973.

RENAN, E. Vie de Jésus. Paris: Michel Lévy Frères, 1863.

Bíblia sagrada. Edição contemporânea de Almeida. São Paulo: Editora Vida, 1994.

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