Quem hoje toma conhecimento, ou mesmo participa, dos inúmeros debates sobre a teoria darwiniana da evolução, tende a imaginar que a efervescência em torno do tema é um fenômeno moderno. Muitos ficariam espantados ao saber que nossa sociedade apresenta um símile de uma controvérsia que, na Antiguidade, dividiu os intelectuais greco-romanos. Se pudéssemos caminhar por uma ágora ou por um fórum romano do século I de nossa era, não seria difícil presenciar acaloradas altercações sobre a origem do olho humano e das demais adaptações biológicas.
Há evidências da existência, já no final do século V a.C., de uma comunidade de ateus que adotavam a filogenia originalmente proposta por Empédocles. (1) Num diálogo relatado por Xenofonte, Aristodemo, amigo de Sócrates (470-399), deixa transparecer sua adesão à ideia de que os seres vivos são “obra do acaso”, (2) sendo provável que ele reproduz uma doutrina de Demócrito (c. 460-c. 370), filósofo que, ao que tudo indica, partilhava do princípio geral da filogenia de Empédocles. (3) Ademais, no Sofista, diálogo em que Sócrates figura como personagem, Platão chama de “maneira vulgar de crer e falar” a tese de que as plantas e os animais foram gerados “por uma causalidade espontânea e que se desenvolve sem o auxílio de pensamento algum”. (4)
Demócrito, Aristodemo e a multidão anônima mencionada por Platão mostram que o ateísmo científico era um dado sociológico importante já na época de Sócrates. (5) E o fato é que, como não podia deixar de acontecer, tal fenômeno foi acompanhado de uma reação filosófica; reação, aliás, de que participaram algumas das maiores mentes da Antiguidade. Sócrates foi o primeiro a reagir, e o primeiro a propor, no Ocidente, a versão biológica do argumento do desígnio (até então, segundo consta dos documentos existentes, os religiosos não faziam caso das adaptações biológicas, e a teologia natural estava adstrita ao argumento providencialista do desígnio). No relato de Xenofonte, Sócrates procura convencer Aristodemo da existência de design inteligente, fundamentando seu discurso sobretudo na observação da serventia das características biológicas. (6)
O ímpeto criacionista de Sócrates é levado adiante por Platão. No Timeu, considerado o grande texto criacionista da Antiguidade pagã, Platão descreve com pormenores milimétricos a criação do mundo, postulando a existência de um demiurgo que, apoiado na contemplação de modelos eternos, atua sobre uma matéria caótica. O intrigante, no entanto, é que, excetuando uma passagem nanica das Leis, Platão não se vale em nenhuma ocasião do argumento do desígnio. Ele simplesmente assume como premissa a existência de um demiurgo sumamente bom, e então deduz, sem consultar os fenômenos, os propósitos de todos os componentes do mundo. Ficamos sem saber, assim, como ele poderia fazer frente à “maneira vulgar de crer e falar”, uma vez que a crença no design inteligente não recebe uma justificação racional.
Sócrates e Platão são partidários da teleologia externa: um designer inteligente trabalha sobre uma matéria que não tem em si mesma seu princípio de organização. Aristóteles (384-322), por sua vez, é partidário da teleologia interna. É verdade que Aristóteles participa da reação contra a primeira onda do materialismo grego; como bem diz Leroi, “de certo modo suas obras científicas são um longo argumento contra os materialistas”. (7) Porém, Aristóteles não defende o criacionismo. Sua teoria, bizarra para os que estão acostumados com a polêmica entre darwinistas e criacionistas, instala uma teleologia irredutível e inconsciente no próprio tecido da natureza. Conforme ele explica de maneira luminosa, “se a técnica de construir navios estivesse inerente na madeira, ela haveria de produzir de modo semelhante à natureza”. (8)
Aristóteles implanta inúmeras forças teleológicas na matéria. Cada uma delas recebe o nome de “forma” (eidos). Para Aristóteles, a matéria nua, identificada com os quatro elementos (ar, água, terra e fogo), é insuficiente para explicar os fenômenos biológicos. Ele admite que algumas características biológicas, como o comprimento extravagante e a rigidez dos espinhos de uma espécie de ouriço-do-mar (Cidaris cidaris), podem ser atribuídas aos poderes da matéria nua. (9) Porém, no que respeita a estruturas biológicas complexas, Aristóteles refreia a ambição materialista e recorre ao conceito de forma.
Molière soube melhor que ninguém encapsular, numa fórmula elegante e manejável, o significado do formalismo aristotélico. Em O doente imaginário, perguntam a um candidato a médico por que o ópio faz dormir, e ele responde: porque há nele uma “virtus dormitiva”. (10) Não passa pela cabeça de um aristotélico, com efeito, reduzir as propriedades do ópio à causalidade físico-química.
O que nos permite afirmar com segurança que a teleologia aristotélica é irredutível, e, portanto, incompatível com o materialismo, é a argumentação desenvolvida na Física contra a filogenia de Empédocles. Aristóteles argumenta que, se a composição dos organismos fosse casual, os resultados dos processos gestacionais não poderiam ser regulares. Aristóteles refere-se ao fato de que girafas costumam parir girafas, e baleias, baleias. (11) Por incrível que pareça, a argumentação aristotélica contra a filogenia materialista reduz-se à constatação de que, se houvesse uma máquina caça-níqueis dentro de cada útero, nada explicaria a regularidade dos resultados (penso abstratamente nos carretéis giratórios de uma máquina caça-níqueis, e não na introdução de moedas em vaginas). Assim, de duas uma: ou Aristóteles triunfa sobre uma caricatura da filogenia de Empédocles, ou, contrariamente à leitura mais óbvia dos fragmentos e dos testemunhos doxográficos, Empédocles realmente defendeu uma filogenia que, comparada à dos atomistas, chega a ser ridícula. Lucrécio, com efeito, não põe uma máquina caça-níqueis dentro de cada útero; ele concebe uma explosão criativa que ocorreu na infância da Terra, da qual saíram organismos capazes de transmitir, de modo regular, suas características a seus descendentes. (12)
Seja qual for a qualidade de sua argumentação, o fato é que Aristóteles rejeita a filogenia materialista; contudo, em oposição a seu mestre, Platão, ele não busca refúgio no criacionismo. A terceira via aristotélica, capaz de siderar os que estão aclimatados ao universo conceitual do cristianismo e da sua crítica, afirma a eternidade das espécies. Uma baleia, por exemplo, é um composto de matéria e de forma; a forma, ingênita e imutável, é transmitida ao longo das gerações.
No que diz respeito à Antiguidade greco-romana, as linhas mestras da controvérsia estão postas; o que houve depois, no helenismo, e mesmo durante o período que se estendeu, exclusive, a Descartes, foi essencialmente a repetição das ideias que remontam a Empédocles, Sócrates e Aristóteles. Na época helenística, o epicurismo constituiu a segunda onda do materialismo grego, e os estoicos, tributários do Sócrates de Xenofonte e do Timeu, reformularam o argumento do desígnio à luz dos inventos de Arquimedes e de outros gênios da engenharia, estabelecendo analogias, por exemplo, entre uma miniatura mecânica do cosmo e o cosmo real. (13)
O quadro geral dessa controvérsia é complicadíssimo e intelectualmente insatisfatório. O modelo filogenético a que se aferram os materialistas, como já apontei, não dá conta dos liames taxonômicos que conectam os organismos de nossa biosfera. Com efeito, se cada organismo é formado de modo independente, como explicar as homologias e os órgãos vestigiais? Ao mesmo tempo, a reação iniciada por Sócrates não se apercebe em nenhum momento dessa deficiência da teoria materialista (Platão, aliás, limita-se a declamar em favor do design inteligente, e Aristóteles sequer alveja uma versão forte da filogenia de Empédocles). Consequentemente, trata-se de um debate em que uma filogenia materialista objetivamente insustentável não é combatida com bons argumentos. Se, por hipótese, os organismos da Terra não estivessem inseridos numa vasta hierarquia de relações taxonômicas, um proponente da filogenia de Empédocles teria razão em sustentar que a imensidão do espaço tem o poder de realizar aquilo que seus adversários insistem em vincular a uma inteligência criativa. (14)
Bibliografia
ARISTÓTELES. Generation of Animals. In: The Complete Works of Aristotle. Vol. I. Princeton: Princeton University Press, 1984.
______. Física I-II. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.
CÍCERO. Of the Nature of the Gods. Londres: William Pickering, 1829.
______. On Academic Scepticism. Indianápolis: Hackett, 2006.
LEROI, A. M. The Lagoon. How Aristotle Invented Science. Londres: Bloomsbury, 2014.
LUCRÉCIO. Da natureza. São Paulo: Abril, 1973.
MOLIÈRE. The Would-Be Invalid. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952.
PLATÃO. Œuvres complètes. Tome septième. Les lois. Paris: Garnier Frères, 1946.
______. Œuvres complètes. Tome cinquième. Timée. Paris: Garnier Frères, 1950.
______. Sofista. São Paulo: Abril, 1972.
XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. São Paulo: Abril, 1972.
Notas (Clique pra voltar ao texto)
(1) Há um argumento, que considero um dos mais bisonhos já aduzidos, segundo o qual os atomistas antigos não seriam verdadeiramente ateus, já que admitiam a existência de deuses. Nesse caso, tampouco seriam ateus os que, hoje, embora descrentes da origem inteligente do mundo, julgam provável a existência de alienígenas dotados de características sobre-humanas.
(2) Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, livro I, cap. IV, p. 55.
(3) Demócrito era ateu no sentido mais absoluto da palavra, já que (diferentemente daqueles que, hoje, optam por raciocinar com base nos dados científicos) estava certo de que o estrato fundamental da realidade não era uma inteligência criativa. Além disso, sabemos que ele acreditava que o espaço infinito abrigava inúmeras cópias idênticas dos habitantes da Terra. Cf. CÍCERO, On Academic Scepticism, livro II, cap. 17, pp. 33-34. Parece evidente, portanto, que Demócrito defendia a teoria empedocliana de que a multiplicação do número de eventos aleatórios, tornada possível pela enormidade do espaço e do número de elementos interagentes, diminui a improbabilidade da geração acidental de entes complexos.
(4) 265 c, p. 200. A referência à “maneira vulgar de crer e falar” está em concordância com um fato admitido nas Leis, a saber, a existência de uma comunidade ateísta em Atenas. Platão explica, inclusive, que tal comunidade não se limitava a descrer dos deuses da religião tradicional. O ateísmo por ela professado revestia-se de densidade cosmológica e envolvia a tese de que a Terra, os astros e os seres vivos não foram produzidos por uma inteligência. Cf. Les lois, livro X, 889, pp. 147-148.
(5) Uso aqui a expressão “ateísmo científico” por amor à concisão; a rigor, eu deveria escrever “ateísmo semicientífico”, já que os ateus da Antiguidade não justificam com argumentos científicos o caráter não derivado do estofo básico do Universo (no caso do atomismo, os átomos, o espaço vazio e as leis da natureza). As razões científicas (por sinal, em grande parte insustentáveis) aparecem apenas quando eles se põem a explicar a formação dos mundos e dos seres vivos.
(6) Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, livro I, cap. IV.
(7) The Lagoon. How Aristotle Invented Science, p. 79.
(8) Física, livro II, cap. 8, 199 b, pp. 59-60.
(9) Generation of Animals, livro V, cap. 3, 783 a, p. 1210.
(11) Livro II, cap. 8, 198 b-199 b, pp. 57-59.
(12) Da natureza, livro V, p. 115.
(13) CÍCERO, Of the Nature of the Gods, livro II, pp. 114-115.
(14) Assim como a ausência de relações taxonômicas, a existência de um espaço suficientemente amplo e de elementos interagentes em número suficiente são fatores críticos na filogenia empedocliana. No entanto, os antigos não estavam em condições de estimar a extensão do espaço disponível para a ocorrência de eventos aleatórios, bem como a quantidade de elementos interagentes.
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