pode ser proveitosamente interpretado como um
caso especial do argumento do desígnio. (1)
Daniel Dennett
Introdução
Desde a Antiguidade, os filósofos formularam vários argumentos para provar a existência de Deus. Os argumentos ontológico, cosmológico e teleológico são os mais famosos. Descartes propôs versões de dois argumentos clássicos para a existência de Deus. A teologia natural, com efeito, constitui o fulcro das Meditações, obra que tem a finalidade de fornecer os fundamentos da ciência cartesiana.
Na carta-prefácio dirigida aos teólogos da Sorbonne (Universidade de Paris), Descartes afirma que as Meditações foram escritas para cumprir a injunção do Papa Leão X no Quinto Concílio de Latrão (1512-1517). (2) Leão X condenou o fideísmo dos aristotélicos paduanos (seita chefiada por Pietro Pomponazzi) e impôs aos filósofos a tarefa de demonstrar racionalmente as verdades da teologia cristã. (3) Para os aristotélicos da Renascença, adeptos da doutrina averroísta da dupla verdade – segundo a qual a teologia e a filosofia devem coexistir apesar de sua total inconsistência –, a imortalidade da alma não seria passível de uma demonstração racional, de modo que apenas a fé na Revelação poderia assegurá-la. Em contrapartida, Descartes pretende mostrar que as duas doutrinas centrais da teologia – a existência de Deus e a imortalidade da alma – podem ser estabelecidas pela luz natural. Pois Descartes julgou, muito corretamente, que somente as demonstrações matemáticas seriam capazes de convencer os descrentes. A intenção apologética é colocada em evidência no título da primeira edição (1641) da principal obra de Descartes: Meditações sobre a filosofia primeira, nas quais a existência de Deus e a imortalidade da alma são demonstradas.
É certo que a demonstração da existência de Deus é uma parte fundamental da filosofia cartesiana. Mas a carta de apresentação à Faculdade de Teologia da Sorbonne contém uma incorreção que não deveria passar despercebida. Sabemos que Descartes almejava a aprovação da Igreja Católica. Por causa disso, Descartes expõe o projeto das Meditações de forma ligeiramente adulterada: dois resultados capitais das Meditações (as demonstrações da existência de Deus e da alma imaterial) são apresentados como os objetivos das mesmas. (4) Na realidade, as Meditações foram empreendidas com a finalidade de refutar o ceticismo. Em outras palavras, Descartes pretende provar que a física (filosofia natural) é possível como uma ciência objetiva. Nada é pressuposto no início das Meditações. O cogito imaterial e a existência de Deus são descobertos ao longo de um processo demonstrativo que parte da epoché generalizada.
Num artigo recente, Daniel Dennett defendeu uma nova interpretação da primeira prova teísta de Descartes. (5) Trata-se, segundo Dennett, de uma versão do argumento do desígnio, e não, conforme a tradição dos comentadores, do argumento cosmológico. A interpretação do filósofo americano direciona a atenção para aspectos até então pouco observados da argumentação de Descartes. De maneira análoga, a demonstração cartesiana estaria sujeita às críticas dirigidas ao argumento do desígnio.
Nossos objetivos no presente artigo são os seguintes: apresentar a estrutura da primeira prova teísta de Descartes e algumas objeções que podem ser levantadas contra ela.
A formulação da primeira prova na Terceira meditação
Descartes foi o autor de duas provas da existência de Deus: uma versão do argumento do desígnio, elaborada na Terceira meditação, e outra do argumento ontológico, elaborada na Quinta meditação.
No sistema cartesiano, a demonstração da existência de Deus permite a instauração do conhecimento objetivo. Reside aí a originalidade da teologia natural de Descartes. Pela primeira vez na história do pensamento, a teologia natural é utilizada para a solução de um problema epistemológico fundamental: o problema do valor objetivo das representações. (6) E há ainda uma outra característica que confere originalidade à primeira prova teísta de Descartes: o meio idealista no qual o argumento do desígnio é desenvolvido.
A instauração do conhecimento objetivo equivale à refutação da hipótese do deus enganador. Isso significa que Descartes necessita provar não apenas a existência de Deus, mas a sua veracidade:
A fim de poder afastá-la [a hipótese do deus enganador] inteiramente, devo examinar se há um Deus, tão logo a ocasião se apresente; e, se achar que existe um, devo também examinar se ele pode ser enganador: pois, sem o conhecimento dessas duas verdades, não vejo como possa jamais estar certo de coisa alguma. (7)
A primeira prova teísta de Descartes é o elo fundamental da cadeia demonstrativa das Meditações: o argumento que possibilita a passagem da ciência solipsista para a ciência objetiva. Se, como acreditamos, o processo cartesiano da dúvida não incide sobre o conhecimento imediato das ideias matemáticas, (8) a demonstração da existência de Deus tem como efeito primordial a validação do conteúdo existencial das ideias sensíveis e, consequentemente, a fundação da física como uma ciência particular. (9) Ademais, o conhecimento da existência de um Deus veraz produz um efeito sobre o conhecimento do próprio cogito. Até então, apenas a intuição imediata do cogito era dotada de uma certeza incondicional, pois o deus enganador podia agir sobre a rememoração das intuições pretéritas, nas quais a própria consciência aparece como uma representação (um objeto da consciência). (10)
O início da Terceira meditação apresenta um sumário dos resultados das meditações anteriores. Descartes reitera a hipótese do deus enganador: a Terra, o céu, os astros e todas as coisas materiais podem não existir fora do sujeito, mas os pensamentos das coisas materiais são indubitáveis. A partir dos resultados da Segunda meditação, Descartes enuncia a súmula de seu conhecimento atual: “Sou uma coisa que pensa, isto é, que duvida, que afirma, que nega, que conhece poucas coisas, que ignora muitas, que ama, que odeia, que quer e não quer, que também imagina e que sente”. (11) Portanto, um domínio científico bastante humilde está assegurado: Descartes conhece apenas a existência e a essência do ser subjetivo. Fora do cogito tudo permanece incerto, pois a hipótese do deus enganador ainda não foi refutada.
Ao mesmo tempo, Descartes descobre o critério da verdade. O cogito é o modelo do conhecimento evidente, ou seja, claro e distinto. Assim, os conhecimentos obtidos no prosseguimento das Meditações – nos quais está incluída a demonstração da existência de Deus – deverão apresentar uma evidência comparável à do cogito. (12) Como dissemos, Descartes, no início da Terceira meditação, tem em suas mãos apenas um conhecimento subjetivo (relativo à existência e à natureza do eu pensante). Isso é muito pouco. O mundo pode não passar de um sonho da mente do sujeito que medita. Se pretende avançar, Descartes necessita superar o solipsismo, ou seja, descobrir se alguma de suas ideias corresponde a algo fora da mente. Mas, segundo Descartes, a via dos sentidos não se franqueia ao meditador que procede metodicamente, em virtude de sua precariedade. Mais uma vez, Descartes examina e critica a doutrina correspondencialista do senso comum, baseada nos sentidos. Trata-se de uma argumentação análoga ao processo da dúvida da Primeira meditação. A crítica ao realismo empírico é a condição prévia da elaboração da primeira prova da existência de Deus, pois o procedimento demonstrativo de Descartes prescinde da existência do mundo externo e considera somente o conteúdo das ideias encontradas na mente.
Para proceder ao exame da epistemologia realista, Descartes faz o inventário dos conteúdos de sua consciência e procura saber quais são os pensamentos que põem o problema de sua validade objetiva. Alguns pensamentos são ideias, ou seja, imagens ou representações das coisas. Em si mesmas, as ideias nunca são falsas. Uma quimera pode não existir fora da mente, mas a ideia de uma quimera é um fato de consciência absolutamente verdadeiro. Portanto, o problema da validade objetiva é posto somente a respeito dos juízos. Isso ocorre porque todo juízo realiza a conexão entre um conteúdo mental e um objeto do mundo externo:
O principal erro e o mais comum que se pode encontrar consiste em que eu julgue que as ideias que estão em mim são semelhantes ou conformes às coisas que estão fora de mim; pois, certamente, se eu considerasse as ideias apenas como certos modos ou formas de meu pensamento, sem querer relacioná-las a algo de exterior, mal poderiam elas dar-me ocasião de falhar. (13)
Descartes então classifica as ideias de acordo com sua origem. Elas podem ser inatas, adventícias (provenientes dos sentidos) ou inventadas. O senso comum acredita que as ideias adventícias correspondem aos objetos externos. Essa crença é baseada numa inclinação natural irrefletida e no caráter involuntário das sensações (a ocorrência da sensação de calor, por exemplo, não depende de minha vontade). No entanto, observa Descartes, as sensações também ocorrem involuntariamente durante os sonhos. As ideias sensíveis, de fato, poderiam provir de objetos externos, mas a semelhança entre a ideia e seu ideado não estaria garantida em virtude dessa proveniência. A ideia adventícia do Sol, com efeito, é totalmente distinta da ideia geométrica dos astrônomos (inata). De acordo com a primeira, o Sol é uma esfera pequenina; de acordo com a segunda, um objeto muito maior do que a Terra. Isso leva Descartes a afirmar que a doutrina fundamental do senso comum é insustentável:
Não foi por um julgamento certo e premeditado, mas apenas por um cego e temerário impulso, que acreditei haver coisas fora de mim, e diferentes de meu ser, as quais, pelos órgãos de meus sentidos ou por qualquer outro meio que seja, enviam-me suas ideias ou imagens e imprimem em mim suas semelhanças. (14)
Está delineado, assim, o quadro em que deverá ocorrer a demonstração da existência de Deus: a interioridade do sujeito solipsista. A refutação do realismo empírico tem a função de cortar o liame entre o sujeito e o mundo externo e preparar o terreno para a nova via idealista proposta por Descartes: “Há ainda uma outra via para pesquisar se, entre as coisas das quais tenho em mim as ideias, há algumas que existem fora de mim”. (15)
Descartes observa que as ideias são imagens ou representações das coisas. Não há diferença entre as ideias consideradas como meros conteúdos da consciência. No entanto, as ideias representam coisas distintas. Algumas ideias representam substâncias, por exemplo. De acordo com Descartes, tais ideias contêm mais “realidade objetiva” do que as ideias que representam modos ou acidentes, ou seja, “participam, por representação, num maior número de graus de ser ou de perfeição”. (16) E a ideia de Deus contém mais realidade objetiva do que as ideias que representam substâncias finitas.
A terminologia escolástica adotada por Descartes é potencialmente enganadora para os leitores contemporâneos, pois pode sugerir a noção de uma realidade extramental. Bouillier esclarece o sentido dos termos “realidade objetiva” e “realidade formal”:
Eles são emprestados da língua da Escola. Segundo a Escola, a ideia era o objeto imediato do pensamento, e a forma era a própria essência de uma coisa. É por isso que Descartes chama de realidade objetiva a realidade expressa ou representada na ideia, e de realidade formal aquela contida no objeto ou na causa exterior da ideia. Possuir formalmente uma realidade, é possuí-la em sentido próprio, na língua cartesiana, ao passo que possuí-la objetivamente, é ter em si somente a representação da realidade. A realidade formal é o original, a realidade objetiva é apenas a imagem, uma representação subjetiva. O termo “objetivo” tem, portanto, na língua cartesiana o sentido contrário àquele que ele recebeu na filosofia alemã desde Kant e que é adotado atualmente na filosofia francesa. (17)
Assim, a realidade objetiva é apenas o conteúdo imanente de uma ideia (aquilo que é projetado diante do olho da consciência), e não uma realidade existente fora da subjetividade. Em decorrência da hipótese do deus enganador, a existência do mundo externo ainda é incerta, de modo que a demonstração da existência de Deus só poderá ocorrer por meio da investigação do universo das representações mentais.
Com base na mensuração da quantidade de realidade objetiva, Descartes interroga a origem das diversas ideias. O princípio que comanda sua investigação é o princípio da adequação causal, segundo o qual deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente quanto em seu efeito. Ex nihilo nihil fit. Dito de outra forma, o mais perfeito não poderia ser uma consequência do menos perfeito: “A luz natural me faz conhecer evidentemente que as ideias são em mim como quadros, ou imagens, que podem na verdade facilmente não conservar a perfeição das coisas de onde foram tiradas, mas que jamais podem conter algo de maior ou de mais perfeito”. (18)
Descartes constata que há diversas ideias cuja realidade objetiva não ultrapassa a capacidade produtiva da natureza humana: as ideias de coisa pensante, de coisas corporais inanimadas, de animais, de anjos e de outros seres humanos. Assim, de acordo com o princípio da adequação causal, nada impede que o espírito humano seja o autor dessas ideias. E quanto à ideia de Deus? Ela poderia provir de um intelecto finito? Nessa questão reside a crux da primeira prova cartesiana da existência de Deus. Descartes dirá que a realidade objetiva dessa ideia não poderia ser atribuída a uma causa humana, ou seja, finita:
Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu próprio e todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram criadas e produzidas. Ora, essas vantagens são tão grandes e tão eminentes que, quanto mais atentamente as considero, menos me persuado de que essa ideia possa tirar sua origem de mim tão-somente. E, por conseguinte, é preciso necessariamente concluir, de tudo o que foi dito antes, que Deus existe. (19)
Descartes, portanto, descobre uma ideia cuja perfeição acarreta a admissão de uma causa externa ao sujeito, a saber, de um ser que possui formalmente todas as perfeições contidas objetivamente em seu efeito. Em outras palavras, somente Deus poderia ser o autor dessa ideia. E Deus, como um ser perfeito, não poderia ser enganador, pois o engano supõe necessariamente uma imperfeição. (20) Cumpre-se assim, de acordo com Descartes, o objetivo da Terceira meditação: a existência de um Deus veraz foi demonstrada. Consequentemente, o solipsismo é superado e a ciência objetiva pode receber uma fundação sólida.
O argumento cartesiano do desígnio
Vimos que, para Descartes, o espírito humano não poderia produzir a ideia de Deus. Dennett observou que a formulação explícita do argumento de Descartes, na Terceira Meditação, não é convincente. (21) O fato já havia sido percebido pelos autores de objeções à Terceira Meditação: Caterus, Mersenne, Hobbes e Gassendi. Ora, por que Descartes não poderia ser o autor de sua ideia de Deus? Não há uma rica tradição de filósofos que elaboraram explicações genéticas das ideias religiosas? Com base na teoria da projeção antropológica de Feuerbach, Marx declarou, por exemplo, acerca da religião: “Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantêm relações entre si e com os seres humanos”. (22) De modo similar, Nietzsche e Freud procuraram estabelecer a gênese psicológica do teísmo. Numa frase que se tornou célebre, Voltaire afirmou que “se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo”. Na verdade, Voltaire prefigura um aspecto da filosofia prática de Kant, na qual a existência de Deus é postulada (independentemente do conhecimento teórico) como fundamento da moral. (23) Descartes realmente deveria ter bons argumentos para rechaçar a hipótese da origem antropológica da ideia de Deus. Ele afirma na Terceira meditação que tal ideia não poderia ser obtida a partir da negação da ideia de finitude:
E não devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadeira ideia, mas somente pela negação do que é finito, do mesmo modo que compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz: pois, ao contrário, vejo manifestamente que há mais realidade na substância infinita do que na substância finita e, portanto, que, de alguma maneira, tenho em mim a noção do infinito anteriormente à do finito, isto é, de Deus antes que de mim mesmo. (24)
Um leitor atento perceberá que Descartes se limita a afirmar (sem demonstrar) a impossibilidade da posição da infinitude a partir da consciência da finitude. Se o finito é posto a partir da anterioridade do infinito, por que o inverso não poderia ser verdadeiro? Nas palavras de Cottingham,
O problema aqui [...] é que Descartes não consegue em parte alguma oferecer um critério independente e convincente para distinguir a diferença entre uma “negação” e um atributo “positivo”. É certamente verdade que, para se compreender o termo “finito”, teremos de compreender que ele é a negação do “infinito”. Mas o oposto também é verdadeiro: para se perceber o significado de “infinito”, teremos de compreender o que significa “finito”. Os pares de opostos como estes parecem ter categorias iguais, porquanto a compreensão de um elemento do par implica automaticamente a compreensão do outro. Se isto estiver correto, então a afirmação de Descartes sobre a “anterioridade” do conceito de infinito não pode ter-se como certa e o seu argumento cai. (25)
De fato, a argumentação explícita de Descartes carece de força persuasiva. Mas algumas analogias fornecidas por Descartes podem explicar os motivos que o levaram a rejeitar a possibilidade de uma origem humana da ideia de divindade. Nas Primeiras respostas (às objeções do teólogo tomista holandês Caterus), Descartes estabelece a analogia entre a ideia de Deus e a ideia de uma máquina altamente complexa. Trata-se, para Descartes, de uma ideia cuja produção pode exceder as capacidades de um intelecto:
Não é mais provável dizer que a causa pela qual a ideia de Deus está em nós, seja a imperfeição de nosso espírito, do que se disséssemos que a ignorância da mecânica fosse a causa pela qual nós imaginamos uma máquina plena de artifício em vez de uma outra menos perfeita. Pois, ao contrário, se alguém tem a ideia de uma máquina, na qual esteja contido todo o artifício que pudéssemos imaginar, inferimos muito bem disso que essa ideia procede de uma causa na qual havia realmente e efetivamente todo o artifício imaginável, ainda que ele esteja apenas objetivamente e não efetivamente nessa ideia. (26)
A mesma analogia aparece na Sinopse da Terceira meditação e nos Princípios da filosofia (I, 17), o que mostra que ela não seria uma ocorrência ocasional da obra de Descartes.
Tais passagens indicam que, para Descartes, a ideia de Deus não era apenas a ideia de algo magnífico, mas a ideia magnífica de algo magnífico. Ademais, elas indicam que Descartes havia sido seduzido pelo argumento do desígnio: efeitos admiráveis requerem causas admiráveis; uma ferradura não poderia produzir um ferreiro; “É preciso um maior para fazer um menor”. (27)
Há, de fato, duas maneiras de representar um objeto magnífico. Imaginemos uma criança que pretende desenhar a estrutura de uma máquina complicada. Ela pode simplesmente apontar para o desenho de uma caixa e afirmar que dentro dela há uma máquina extremamente engenhosa. (28) Essa estratégia barata de representação foi utilizada quando, no romance de Saint-Exupéry, o pequeno príncipe pediu que o narrador fizesse o desenho de um carneiro. (29) É evidente que, se a ideia cartesiana de Deus fosse apenas a representação de um objeto magnífico, o argumento da Terceira Meditação jamais funcionaria.
Vimos que, de acordo com a definição de Descartes, as ideias são imagens ou representações dos objetos (que podem não existir, a exemplo de uma quimera). Consequentemente, assim como o design de uma máquina sofisticada demanda uma explicação especial, a ideia de uma estrutura rica em design não poderia ser obtida de graça. As forças cegas da natureza, certamente, podem produzir objetos como rochas, nuvens, átomos e moléculas simples; mas seriam capazes de construir uma máquina altamente organizada? Do mesmo modo, a mente limitada de Descartes poderia ser a fonte da imagem de Deus?
Ao atravessar um campo, Paley encontra uma máquina funcionalmente complexa: um relógio. O exame da estrutura do objeto lhe permite inferir a existência de um artífice inteligente: “Não pode haver design sem um designer”. (30) Posteriormente, Paley descobre máquinas orgânicas incomparavelmente mais sofisticadas. Descartes não dispõe do mundo externo (antes da demonstração da existência de Deus). Ele perscruta sua mente e descobre o análogo ideal das máquinas de Paley. Para os teólogos físicos, a descoberta do design permite a superação do materialismo; no caso de Descartes, ela permite a superação do idealismo. A ideia cartesiana de Deus porta em si mesma as excelências do objeto representado e aponta para uma causa conforme à sua grandiosidade. Uma outra metáfora utilizada por Descartes torna seu argumento ainda mais claro. Nas respostas às objeções de Gassendi, Descartes compara sua ideia de Deus à obra de um gênio artístico, o pintor grego Apeles:
Quando vós perguntais “como eu provo que a ideia de Deus está em nós como a marca do operário impressa em sua obra, qual é a maneira dessa impressão, e qual é a forma dessa marca”, é o mesmo que se, reconhecendo em algum quadro tanto artifício que eu julgasse não ser possível que tal obra tivesse saído de outra mão que a de Apeles, e que eu viesse a dizer que esse artifício inimitável é como uma certa marca que Apeles imprimiu em todas as suas obras para distingui-las de outras, vós me perguntásseis qual é a forma dessa marca, ou qual é a maneira dessa impressão. (31)
As comparações com as máquinas complexas e com as obras do gênio artístico esclarecem o teor da primeira prova teísta de Descartes. Estamos diante de uma versão – idealista – do argumento do desígnio. Com efeito, a ideia de Deus, para Descartes, é imediatamente divina (“a marca do operário impressa em sua obra”), e as entidades divinas, assim como a pintura de Apeles, reclamam a ação do gênio criativo. Como afirmou Dennett, “Se não interpretamos a realidade objetiva como uma marca de excelência no design da ideia, o princípio de causação de Descartes perde toda persuasão”. (32)
A interpretação de Dennett destoa da interpretação usual dos comentadores de Descartes, segundo os quais a primeira prova sobre a existência de Deus seria uma versão idealista do argumento cosmológico. Conforme a distinção estabelecida por Kant, o argumento cosmológico parte de uma existência global e indeterminada (o fato de que o mundo existe), ao passo que o argumento do desígnio parte de características particulares e determinadas do mundo (as adaptações orgânicas, por exemplo). (33) Com efeito, o conteúdo representacional específico (realidade objetiva) de uma determinada ideia é a base do argumento cartesiano, e não a existência da mente de per si. Não se trata, no caso de Descartes, de um conteúdo mental qualquer, mas de uma ideia dotada de um caráter singular. Mutatis mutandis, a realidade objetiva da ideia de Deus, para Descartes, corresponde à “complexidade irredutível” propugnada pelos teóricos do intelligent design. (34)
Ora, teria Descartes realmente uma ideia dotada da contextura da própria divindade? Uma ideia que porta, em si mesma, a excelência incomparável do objeto representado? Hobbes chegou a dizer que Descartes (como um espírito finito) não tinha nenhuma ideia de Deus. (35) De fato, tudo indica que nossa ideia de Deus é semelhante ao desenho de um carneiro que o aviador entregou ao pequeno príncipe: nada que necessite de uma explicação especial. Mas isso não é o mais importante. O fato é que Descartes julgou que sua ideia de Deus não era apenas a ideia de algo magnífico, mas a ideia magnífica de algo magnífico. A partir dessa apreciação subjetiva, ele aderiu ao princípio da adequação causal: o design inteligente percebido na ideia só poderia ser atribuído a um designer inteligente. Portanto, ainda que seja verdade que nós não temos uma ideia (divina) de Deus, essa constatação deixa de fora o argumento que efetivamente comanda a primeira prova teísta de Descartes: o argumento do desígnio. Assim, o que importa é saber que, na visão de Descartes, o design não poderia existir sem um designer. Reside aí o nervus probandi do primeiro argumento cartesiano para a existência de Deus.
Conforme foi observado, há algo de inócuo na formulação explícita da primeira prova teísta de Descartes. É difícil compreender a razão pela qual o espírito humano não poderia ser o criador de sua ideia de Deus. Mas o exame das analogias fornecidas por Descartes (com uma máquina sofisticada e com o gênio artístico) trazem à luz um argumento mais sólido e interessante: o argumento do desígnio, exposto de modo idealista e com a função de solucionar um problema de crítica do conhecimento.
O argumento do desígnio remonta à Antiguidade e consiste no arrazoado mais popular da teologia natural. Nas palavras de Kant (um crítico das provas da existência de Deus), “Esta prova merece sempre ser citada com respeito. Trata-se da mais antiga, mais clara e mais conforme com a razão humana comum”. (36) Atualmente chamado de intelligent design, o argumento é tradicionalmente apresentado em sua versão biológica, baseada nas maravilhas das adaptações orgânicas. De Galeno a Paley, a complexidade funcional dos organismos foi utilizada como uma poderosa arma contra as explicações materialistas da origem das espécies. Nos Diálogos sobre a religião natural (1779), David Hume introduz três personagens fictícios que travam um animoso debate. Cleanthes defende o argumento do desígnio e menciona o exemplo clássico da complexidade do olho: “Observe, anatomize o olho: inspecione sua estrutura e sua engenhosidade; e me diga, a partir de seus próprios sentimentos, se a ideia de um artífice não se impõe imediatamente com a força de uma sensação”. (37) Philo, o oponente de Cleanthes, desenvolve o argumento em questão como uma preparação para sua crítica: “Arremesse uma porção de peças de aço, sem contorno ou forma; elas jamais se organizarão para compor um relógio. Pedras, argamassa e madeira, sem um arquiteto, jamais constroem uma casa”. (38) Cleanthes e Philo expressam uma intuição tenaz, segundo a qual a matéria impensante (que opera conforme o acaso e a necessidade) seria incapaz de gerar as admiráveis estruturas biológicas. O mais perfeito não poderia ser uma consequência do menos perfeito, reza o princípio da adequação causal.
No entanto, apesar de aparentemente manifesto à razão, o princípio da adequação causal foi posto em causa por diversos filósofos. O amigo de Descartes, o teólogo Marin Mersenne, apresentou uma forte objeção à primeira prova da existência de Deus (nas Segundas objeções): não é necessário que todas as perfeições do efeito estejam na causa, visto que as forças da natureza inorgânica são capazes de produzir vários tipos de organismos. De acordo com Mersenne, verificamos
todos os dias que as moscas e inúmeros outros animais, assim como as plantas, são produzidos pelo sol, pela chuva e pela terra, nos quais não há nenhuma vida, como há nesses animais, vida que é mais nobre do que qualquer outro grau puramente corpóreo, de onde resulta que o efeito cobra, de sua causa, alguma realidade, que no entanto não existia na causa. (39)
Na realidade, Mersenne toca no âmago da “perigosa ideia de Darwin”. A objeção é ainda mais surpreendente vinda de um padre, pois supõe que o design complexo dos organismos poderia ser engendrado pelo mecanismo acéfalo da matéria. Trata-se, é verdade, da crença obsoleta no fenômeno da geração espontânea, mas isso não significa que a observação de Mersenne, em linhas gerais, não seja válida: a origem da vida e a evolução das espécies, certamente, constituem exemplos de geração do mais complexo a partir do menos complexo.
Em sua resposta, no entanto, Descartes afirmou que os seres vivos são desprovidos de perfeições não encontradas nos corpos inanimados:
O que dizeis das moscas, das plantas, etc., não prova, de maneira alguma, que algum grau de perfeição possa estar num efeito, não tendo estado antes na causa. Pois é certo não haver perfeição nos animais destituídos de razão que não se encontre também nos corpos inanimados, ou, se há alguma perfeição, esta lhes provém de outra parte, não sendo o sol, a chuva e a terra as causas totais desses animais. (40)
A opinião de Descartes parece ser motivada pela rejeição epistemológica das causas finais no terreno da física, conforme a tese defendida na Quarta Meditação e nos Princípios da filosofia (I, 28 e III, 2). Com efeito, Descartes não admitia sequer que fosse possível, por exemplo, atribuir ao olho a função da visão. (41) É verdade que Descartes forneceu ousadas explicações mecanicistas (baseadas unicamente em causas eficientes) de todos os fenômenos da natureza. Nem mesmo a gênese do embrião dos mamíferos foi preterida. (42) Mas isso só ocorreu porque Descartes fechou os olhos para as adaptações (conformidades a fins) exibidas pelos seres vivos. (43) Ora, um filósofo que atribuiu a formação do embrião à mera circulação das partículas não poderia julgar que os organismos possuem características que não são encontradas na matéria inorgânica (aquelas que a biologia moderna chama de “emergentes”). Nas palavras de Cottingham,
O problema com este artifício é que Descartes parece estar a tornar a sua posição imune à crítica, negando manifestamente a possibilidade de haver propriedades emergentes genuínas. Deste modo, os biólogos evolucionistas teriam de estar necessariamente errados, na perspectiva de Descartes, ao supor, por exemplo, que a consciência poderá emergir de forças não-conscientes. (44)
E Cottingham conclui:
Num desdobramento do argumento da Terceira Meditação, Descartes sustenta, com efeito, que a mente não poderia provir de uma entidade menos nobre: a matéria impensante. Aos olhos de Descartes parecia óbvio que apenas uma mente seria capaz de gerar outra mente, (46) ou seja, que uma ferradura não poderia fabricar um ferreiro.
A posteridade robusteceu a objeção de Mersenne ao princípio cartesiano da adequação causal. O filósofo e padre francês Jean Meslier (1664 – 1729), o primeiro escritor abertamente ateu da história, foi autor de uma crítica da teologia natural de Fénelon. Para Meslier, o princípio da adequação causal consiste numa petição de princípio:
Se o Universo, como diz o autor [Fénelon], porta a marca de uma causa infinitamente potente e industriosa, com uma razão mais forte aquele que o teria produzido, sendo muito mais perfeito do que o Universo, portaria em si mesmo a marca de uma causa infinitamente potente e industriosa [...] Mas se aquele que teria produzido o Universo, tão perfeito quanto ele possa ser, não porta a marca de uma causa infinitamente potente e industriosa, por que, então, ele [Fénelon] deseja sustentar que o Universo, que é sem dúvida muito menos perfeito do que aquele que o teria produzido, portaria a marca de uma causa infinitamente perfeita e industriosa? (47)
Assim como Fénelon não precisaria avançar para além do mundo material, Descartes poderia ter parado em seu mundo mental (o ponto de partida da Terceira meditação), sem buscar alhures a causa infinitamente perfeita e industriosa de sua ideia de Deus. Com efeito, a postulação de um artífice divino apenas coloca uma dificuldade adicional: qual a origem do causador do design encontrado no mundo físico ou numa ideia mental? Se ele não necessita de uma causa, por que outras entidades menos perfeitas necessitariam de uma? Os partidários do argumento do desígnio falam como o candidato a médico satirizado por Molière no Doente imaginário: quando lhe perguntam por que o ópio faz dormir, ele responde: “Porque há nele uma virtude dormitiva”. (48) A resposta, obviamente, não nos esclarece a respeito das propriedades químicas do ópio e de seus efeitos fisiológicos. O raciocínio é meramente circular. Do mesmo modo, não poderíamos explicar a origem do design mediante a postulação de mais design. O personagem cético do diálogo de Hume, Philo, formula várias críticas ao argumento do desígnio. Uma das mais interessantes é uma antecipação da teoria da evolução por seleção natural, apresentada como uma mera hipótese. Philo parte da observação de uma máquina intrincada e conclui que sua construção não necessitaria ser atribuída a um grande designer, pois um acúmulo de tentativas ao longo de um vasto período poderia explicá-la:
Se observamos um navio, que ideia elevada devemos conceber da engenhosidade do carpinteiro que estruturou uma máquina tão complicada, útil e bela? E que surpresa teremos ao descobrir que ele é um mecânico estúpido, que imitou outros e copiou uma arte que, através de uma longa sucessão de eras, após múltiplas tentativas, erros, correções, deliberações e controvérsias, foi gradualmente aprimorada? Muitos mundos podem ter sido arruinados e malogrados, durante uma eternidade, antes que este sistema fosse criado; muito trabalho perdido; muitas tentativas infrutíferas; e um lento, mas contínuo aperfeiçoamento levado adiante ao longo de infinitas eras na arte de construção de mundos. (49)
A especulação de Hume não tardou a ser vindicada. Em meados do século XIX, Charles Darwin e Alfred Russel Wallace propuseram uma teoria materialista que se tornou amplamente aceita e arruinou o argumento do desígnio em sua modalidade biológica. Numa carta a Ferdinand Lassalle de 16 de janeiro de 1861, Marx escreveu que “O livro de Darwin [A origem das espécies] desfere pela primeira vez um golpe mortal na teleologia das ciências da natureza”. (50) Podemos afirmar que Darwin pagou as notas promissórias fornecidas pelos materialistas anteriores e mostrou como a matéria estúpida é capaz de criar as adaptações orgânicas. O mecanismo evolutivo defendido por Darwin é chamado de seleção natural. A evolução darwiniana é um processo gradual que vai do simples ao complexo e que ocorre por meio da conservação e acumulação das características hereditárias que favorecem a sobrevivência e a reprodução dos organismos. No caso da evolução do olho, por exemplo, podemos observar uma série de graus de complexidade:
A razão me diz que, se é possível mostrar a existência de numerosas gradações a partir de um olho simples e imperfeito até um olho complexo e perfeito, cada gradação sendo útil a seu possuidor, como é certamente o caso; se, além disso, o olho sempre varia e as variações são herdadas, como também é certamente o caso; e se tais variações devem ser úteis a qualquer animal sob condições cambiantes de vida, então a dificuldade em se acreditar que um olho perfeito e complexo pode ser formado pela seleção natural, embora insuperável por nossa imaginação, não deve ser considerada subversiva à teoria. (51)
O enigma de Cleanthes foi solucionado. O design pode ser construído sem um designer. Há vários estágios intermediários (observáveis em organismos atuais) através dos quais os olhos puderam evoluir, desde o ocelo mais rudimentar até o sofisticado olho-câmera dos mamíferos. Para tornar o assunto mais claro, mencionemos alguns estágios importantes: células fotossensíveis; agregados de células pigmentares sem um nervo; um nervo óptico cercado de células de pigmento e coberto por uma película translúcida; células pigmentares que formam uma leve depressão; as mesmas células formando uma depressão mais profunda; a existência de uma película sobre a depressão com a forma de uma lente; e a presença de músculos que permitem o ajuste da lente. Todos esses estágios podem ser encontrados em organismos viventes: dinoflagelados (protozoários comuns no fitoplâncton) apresentam manchas oculares capazes de orientá-los em direção à luz; alguns equinodermos e platelmintos possuem cálices oculares que contêm células fotossensíveis, estrutura que permite uma melhor captação da direção das fontes luminosas; muitos mamíferos são dotados de apenas dois tipos de fotorreceptores cromáticos, o que lhes permite uma discriminação cromática inferior à dos humanos etc. Além disso, vários animais são dotados de capacidades visuais não encontradas na espécie humana. Os humanos, por exemplo, não veem as radiações ultravioletas, como as abelhas, e sua visão, no escuro, chega a ser cem vezes inferior à das corujas. (52)
Na perspectiva darwiniana, a complexidade da vida é o resultado de uma combinação de mutações acidentais e seleção natural. Ela não necessita, portanto, da intervenção de um designer inteligente. O design biológico é literalmente pulverizado: dividido em diversos estágios, cada um dos quais, muito simples, é incapaz de representar um desafio à explicação naturalista. Pequenas variações surgem constantemente diante de nossos olhos; os membros de uma mesma prole jamais são absolutamente idênticos. Por que os pequenos desvios morfológicos, sendo hereditários, não poderiam ser acumulados ao longo de uma vasta série de gerações? A surpreendente diversidade das raças caninas não foi obtida num intervalo de tempo relativamente curto, como resultado da domesticação do lobo?
Darwin, em suma, contrariou o princípio da adequação causal e mostrou como uma ferradura pode fabricar um ferreiro. A complexidade é o resultado (e não a causa) de um processo que parte das formas biológicas mais simples. Como observou Meslier, a pressuposição da complexidade seria uma petição de princípio. Assim, a teoria da evolução por seleção natural é capaz de dissolver a intuição que está na base da primeira prova teísta de Descartes. De acordo com Dennett,
Antes do aparecimento de Darwin, Descartes teve uma razão bastante convincente para crer em Deus. Ele descobrira um certo design inteligente nos confins de sua própria mente, e você não obtém o design inteligente de graça. Algo muito especial deve explicá-lo. O que Descartes não poderia ter imaginado [...] é a hipótese de que toda essa magnificência, todo esse design, pode ter uma causa última não divina: a evolução por seleção natural. (53)
O moderno movimento estadunidense do intelligent design ressuscita o princípio da adequação causal em sua oposição ao darwinismo. Seus proponentes se empenham para colocar o antigo argumento do desígnio em bases científicas mais sólidas e atuais. Em 1996, o bioquímico americano Michael Behe publicou A caixa preta de Darwin: o desafio da bioquímica à teoria da evolução. Segundo Behe, algumas estruturas biológicas são “irredutivelmente complexas”, ou seja, compostas de partes que não poderiam ser removidas sem impossibilitar o funcionamento do sistema. Assim, os componentes de um sistema irredutivelmente complexo não poderiam surgir por meio da seleção natural de pequenas variações úteis à sobrevivência do organismo. (54) Behe forneceu os exemplos do flagelo bacteriano e da coagulação sanguínea. No entanto, os biólogos evolucionistas conhecem vários exemplos de sistemas vivos cujas partes modificam suas funções à medida que evoluem. (55)
Em 1999, o filósofo e matemático americano William Dembski publicou Intelligent Design: The Bridge between Science & Theology. Nesta obra, Dembski sustenta que a informação genética contida nos sistemas vivos não poderia ser gerada pelas forças cegas da natureza. Trata-se de uma aplicação da chamada “lei da conservação de informação”, uma criação do próprio Dembski. (56) De acordo com essa lei, a quantidade de informação que sai de um sistema físico jamais pode exceder a quantidade de informação introduzida. De modo que, segundo Dembski, as enormes quantidades de informação contidas nos sistemas vivos devem ser atribuídas a um designer inteligente externo ao sistema da natureza. Ora, não é difícil perceber que estamos diante do princípio cartesiano da adequação causal, expresso na linguagem da moderna teoria da informação. Contudo, como mostra Stenger, (57) a informação equivale à diminuição da entropia (desordem) de um sistema. Em outras palavras, informação é ordem. Mas a entropia, diferentemente da energia, não é conservada. De fato, a segunda lei da termodinâmica afirma que a entropia total de um sistema isolado permanece constante ou aumenta com o decorrer do tempo. Por outro lado, a entropia de um sistema aberto (que troca energia com seu meio exterior) pode diminuir, e os seres vivos são sistemas abertos. A “lei” de Dembski, portanto, é insustentável. A entropia não é constante e a informação pode ser gerada sem um designer inteligente. Portanto, de acordo com a biologia moderna, o mais perfeito pode ser uma consequência do menos perfeito. Ainda assim, apesar dos ensinamentos da ciência evolutiva, constatamos que a essência da primeira prova teísta de Descartes permanece viva no imaginário de uma multidão de eruditos e populares. O princípio da adequação causal está no cerne de uma das maiores controvérsias da cultura contemporânea: aquela que opôs os partidários do intelligent design ao evolucionismo. Os criacionistas não imaginam que as características dos seres vivos possam ser atribuídas a um artífice ignorante (a matéria), assim como Descartes não imaginava que o intelecto humano poderia ser o criador de uma ideia tão excelsa: a ideia divina de Deus.
Conclusão
Vimos que Descartes apresenta duas versões de dois argumentos tradicionais para a existência de Deus. De modo inédito na história da filosofia, as demonstrações teístas de Descartes têm uma função epistemológica: a fundação da física como uma ciência objetiva. Contrariamente à opinião geralmente admitida pelos comentadores, a primeira prova cartesiana da existência de Deus (desenvolvida na Terceira Meditação) não seria uma versão do argumento cosmológico, mas do argumento do desígnio, transposto do mundo externo para a esfera das ideias subjetivas. Com efeito, Descartes toma como ponto de partida o conteúdo representacional específico de uma ideia. Com base no princípio da adequação causal, Descartes afirmou que a entidade mental mais perfeita (a ideia de Deus) não poderia ser produzida por uma entidade menos perfeita (o intelecto humano). Tal princípio foi engenhosamente criticado por pensadores como Mersenne, Meslier e Hume, antes de receber um golpe fatal do evolucionismo darwiniano. Mersenne observou que o fenômeno do surgimento da vida supõe a existência de causas menos perfeitas do que seus efeitos. Meslier mostrou que o princípio da adequação causal é um raciocínio circular. Dentre as objeções levantadas por Hume, podemos destacar uma antecipação da teoria da evolução por seleção natural. Por fim, Darwin mostrou como a complexidade adaptativa dos organismos pode ser produzida pelas forças cegas da matéria.
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Notas (Clique pra voltar ao texto)
(1) D. DENNETT, Descartes’ Argument from Design. In: Journal of Philosophy 105.7 (2008), p. 345.
(2) R. DESCARTES, Meditações; Objeções e respostas, p. 76.
(3) J. W. O’MALLEY, Giles of Viterbo on Church and Reform: A Study in Renaissance Thought, pp. 41-43.
(4) Como afirmou Moyal, “As Meditações tinham a finalidade de refutar os céticos e provar a possibilidade da ciência em geral. Se o conhecimento da existência de Deus foi adquirido ao longo do caminho, isso foi, em certo sentido, um ganho incidental”. Cf. G. J. D. MOYAL, Descartes’s Metaphysics as Critical Philosophy. In: MOYAL, G. J. D. (ed.). René Descartes: Critical Assessments. Vol. II, p. 4.
(5) D. DENNETT, Descartes’ Argument from Design. In: Journal of Philosophy 105.7 (2008), pp. 333-345.
(6) M. GUÉROULT, Descartes selon l’ordre des raisons. T. I, pp. 203-204.
(7) R. DESCARTES, Meditações; Objeções e respostas, p. 100.
(8) Na Quinta meditação, Descartes admite que a dúvida atinge somente a memória das ideias matemáticas intuídas no passado. Cf. R. DESCARTES, Meditações; Objeções e respostas, p. 127.
(9) Para Descartes, as sensações são informativas a respeito da existência dos objetos materiais. E a demonstração da existência do mundo material permite o estabelecimento da física como uma ciência distinta da geometria pura. Diferentemente dos objetos físicos, os objetos geométricos são meramente possíveis.
(10) M. GUÉROULT, Descartes selon l’ordre des raisons. T. I, pp. 155-157.
(11) R. DESCARTES, Meditações; Objeções e respostas, p. 99.
(17) F. BOUILLIER, Histoire de la philosophie cartésienne. T. I, pp. 76-77 (nota).
(18) R. DESCARTES, Meditações; Objeções e respostas, p. 105.
(21) D. DENNETT, Descartes’ Argument from Design. In: Journal of Philosophy 105.7 (2008), p. 334.
(22) K. MARX, O capital, Livro I, volume I, p. 94.
(23) F. A. LANGE, The History of Materialism, Livro I, Seção IV, p. 17.
(24) R. DESCARTES, Meditações; Objeções e respostas, p. 108.
(25) J. COTTINGHAM, A filosofia de Descartes, pp. 82-83.
(26) AT IX 84. [Isto é: edição Adam-Tannery das obras completas de Descartes, volume IX, p. 84. O mesmo vale para notações semelhantes].
(27) D. DENNETT, A perigosa ideia de Darwin, p. 74.
(28) Dennett cita o exemplo do romancista que se encontra diante do desafio de retratar a genialidade poética de um personagem fictício: ele pode meramente relatar os dotes artísticos (a alternativa barata) ou produzir uma poesia realmente genial como parte de seu romance (a alternativa mais valorosa). A distinção é crucial para a compreensão da primeira prova cartesiana da existência de Deus. Descartes diria que os dotes artísticos realmente exibidos tem mais realidade objetiva do que os simplesmente indicados. Cf. D. DENNETT, Descartes’ Argument from Design. In: Journal of Philosophy 105.7 (2008), pp. 338-339).
(29) A. de SAINT-EXUPÉRY, O pequeno príncipe, p. 12.
(30) W. PALEY, Natural Theology, p. 12.
(31) R. DESCARTES, Oeuvres philosophiques, p. 310.
(32) D. DENNETT, Descartes’ Argument from Design. In: Journal of Philosophy 105.7 (2008), p. 340.
(33) I. KANT, Crítica da razão pura, p. 382.
(34) Dennett afirmou que “O conceito cartesiano de realidade objetiva, quando aplicado à sua ideia de Deus, pode ser visto desempenhando uma função paralela à do conceito de complexidade irredutível do movimento do intelligent design, a assinatura putativa de uma Inteligência criativa”. Cf. D. DENNETT, Descartes’ Argument from Design. In: Journal of Philosophy 105.7 (2008), p. 345.
(36) I. KANT, Crítica da razão pura, p. 384.
(37) D. HUME, Dialogues Concerning Natural Religion, p. 65.
(39) R. DESCARTES, Meditações; Objeções e respostas, p. 146.
(41) Em suas objeções à Quarta meditação, Gassendi condena a posição de Descartes no tocante à questão da cognoscibilidade das causas finais no âmbito da ciência da natureza, pois ela inviabilizaria a versão fisicalista do argumento do desígnio. Gassendi opõe a Descartes um agnosticismo mitigado a respeito dos desígnios de Deus, visto que seria despropositado negar a existência de certos fins (como os das estruturas orgânicas) que estão expostos à vista de todos (cf. R. DESCARTES, Oeuvres philosophiques, pp. 239-240). Em sua resposta, Descartes reitera que “não podemos fingir que haja fins mais fáceis de descobrir do que outros; pois eles estão todos igualmente ocultos no abismo imperscrutável [da sabedoria de Deus]” (cf. Ibid., p. 313).
(42) Nas obras Primeiros pensamentos sobre a geração dos animais e Descrição do corpo humano.
(43) Numa carta a Mersenne de 20 de fevereiro de 1639, Descartes compara a explicação da formação dos organismos à explicação da formação de um grão de sal e de um floco de neve. Cf. AT II 525.
(44) J. COTTINGHAM, A filosofia de Descartes, p. 78.
(46) “Já que sou uma coisa pensante, e tenho em mim alguma ideia de Deus, qualquer que seja, enfim, a causa que se atribua à minha natureza, cumpre necessariamente confessar que ela deve ser de igual modo uma coisa pensante e possuir em si a ideia de todas as perfeições que atribuo à natureza divina”. Cf. R. DESCARTES, Meditações; Objeções e respostas, p. 111.
(47) J. MESLIER, Notes contre Fénelon, p. 8.
(48) MOLIÈRE, The Imaginary Invalid, p. 77.
(49) D. HUME, Dialogues Concerning Natural Religion, p. 77.
(50) Apud T. F. GLICK, What about Darwin?, p. 273.
(51) C. DARWIN, The Origin of Species, p. 172.
(52) M. ISAAK, The Counter-Creationism Handbook, pp. 94-95.
(53) D. DENNETT, Descartes’ Argument from Design. In: Journal of Philosophy 105.7 (2008), pp. 344-345.
(54) Nas palavras de Behe, “Com irredutivelmente complexo quero dizer um sistema único composto de várias partes compatíveis, que interagem entre si e que contribuem para sua função básica, caso em que a remoção de uma das partes faria com que o sistema deixasse de funcionar de forma eficiente. Um sistema irredutivelmente complexo não pode ser produzido diretamente (isto é, pelo melhoramento contínuo da função inicial, que continua a atuar através do mesmo mecanismo) mediante modificações leves, sucessivas, de um sistema precursor, porque qualquer precursor de um sistema irredutivelmente complexo ao qual falte uma parte é, por definição, não-funcional”. Cf. M. BEHE, A caixa preta de Darwin: o desafio da bioquímica à teoria da evolução, p. 48.
(55) V. STENGER, The Fallacy of Fine-Tuning, p. 34.
(56) Segundo Dembski, “O acaso e as leis [da natureza] operando em conjunto não podem gerar informação”. Cf. W. DEMBSKI, Intelligent Design: The Bridge between Science & Theology, p. 168.