Após um intervalo maior do que dois anos e meio, voltamos hoje a publicar textos em nosso blog! Vicissitudes pessoais impediram que, ao longo de 2015 e 2016, Giuliano Casagrande escrevesse textos novos e eu, Erick Fishuk, gerenciasse o site com regularidade. Mas agora que resolvemos vários assuntos, retomamos nossos contatos e estamos trocando ideias pra que Giuliano volte a redigir textos e eu, Erick, volte a postar coisas novas! Marcando nossa retomada, que ainda será gradual, apresentamos aqui um texto inédito do Giuliano, em que ele sintetiza sua concepção pessoal de “materialismo científico”, baseada nas mais recentes descobertas da ciência. Sua teorização implica uma grande quebra em relação a tudo o que já foi postado aqui, mas de forma alguma inviabiliza o valor didático e informativo dos textos anteriores. Celebramos hoje essa retomada e essa contribuição inovadora, apresentando o trabalho que segue abaixo, sobre o qual vocês são livres pra opinar, dar sugestões e, sobretudo, partilhar nas redes sociais. Boa leitura e fiquem conosco!
A matéria é o primário. A sensação, o pensamento
e a consciência são o produto supremo
da matéria organizada de um
modo especial. (1)
Lenin
Conforme um célebre mantra moderno, a ciência é estruturalmente incapaz de arbitrar sobre assuntos teológicos. No entanto, com exceção de algumas modalidades puramente metafísicas e impopulares, todas as religiões estão comprometidas com alegações sobre o funcionamento do mundo empírico. Os criacionistas, por exemplo, creem que o mundo é o produto de uma causa inteligente. Os evolucionistas, por sua vez, argumentam que os seres vivos são gerados pela matéria. Há um conflito, portanto, entre o materialismo científico e a religião.
Cumpre fazermos aqui um esclarecimento preliminar. A história da ciência revela que a noção de matéria é tão fluida quanto o rio de Heráclito. Há, de fato, um abismo entre os grãos duros de Demócrito e os campos quânticos. Como observou Russell, “A matéria tornou-se tão fantasmagórica quanto qualquer coisa numa sessão espírita”. (2) Com igual argúcia, Chomsky chegou à conclusão de que, como resultado da orgia de revoluções científicas, “não há um conceito claro e definido de corpo”. (3) E o mais assombroso é que nem mesmo o espaço-tempo escapou da fúria iconoclasta: de acordo com a teoria quântica da gravitação, o espaço-tempo não é uma entidade primitiva e irredutível, mas um epifenômeno de um determinado campo quântico. (4)
O progresso dramático da ontologia científica torna necessária uma noção mais relaxada de materialismo. Porém, como dar ao termo um significado não trivial? Sugerimos que o materialismo seja identificado com o ateísmo e com algumas tendências da filosofia da mente.
O materialismo cosmológico, equivalente ao ateísmo, deve ser distinguido do materialismo psicológico, que faz da mente humana uma realidade derivada. Seja como for, ambas as vertentes podem fazer abstração (dentro de certo limite) da configuração básica atribuída ao Universo no transcorrer da evolução da ciência. A matéria, assim, seria mais proveitosamente definida como aquilo que não é originalmente mental.
Somos liberais e propomos uma demarcação abrangente: a matéria pode ser tudo, menos uma mente originária. Do contrário, teríamos de admitir a ocorrência de uma refutação precoce e caricatural do materialismo, talvez já na primeira metade do século XIX, quando Faraday introduziu o conceito de campo eletromagnético na ontologia do mundo físico. Com efeito, se os materialistas assimilaram o golpe de Faraday, o que nos impede de alargar ainda mais a definição de matéria? Em que ponto começa o setor proibido do plano inclinado? Por que deveríamos, em suma, ficar apreensivos com a relativização dos conceitos tradicionais da física?
É verdade que muitos pensadores contemporâneos não puderam digerir adequadamente as mais recentes transformações do conceito de matéria. No caso dos físicos, o emprego de um vocabulário niilista é sintomático da violência titânica da nova ontologia. Um exemplo paradigmático é o de Lawrence Krauss, cosmólogo que se aferra à ideia tradicional de matéria. Quando a teoria quântica da gravitação apontou para o caráter insubstancial das partículas elementares e do próprio espaço-tempo, Krauss sentiu-se impelido a declarar que o Universo é um produto do nada quântico. (5) Sem dúvida, a ideia de nada é uma opção óbvia para aqueles que só têm olhos para um conceito obsoleto de matéria.
Tal não é o caso dos materialistas esclarecidos. Numa crítica à interpretação de Krauss, o físico David Albert argumenta que o vácuo quântico é uma forma de matéria: “Os estados de vácuo da teoria quântica da gravitação – não menos do que girafas, refrigeradores ou sistemas solares – são arranjos particulares de um material físico elementar”. (6) Aliás, a mera existência de leis já se qualifica como uma existência material, segundo nossa definição, e o próprio Krauss é obrigado a reconhecer que as leis da física quântica preexistem à emergência do Universo.
Seja como for, os cosmólogos quânticos são essenciais para a elaboração de um conceito maduro de materialismo. Tudo entra nos eixos quando descobrimos que a única função do linguajar niilista é assinalar a ausência da matéria espacial e temporal. É justo mencionarmos aqui o nome de Alexander Vilenkin, um dos cosmólogos mais qualificados da atualidade. Vilenkin descreve matematicamente um processo em que o fenômeno do tunelamento quântico possibilita o trânsito entre o nada e o espaço-tempo. O problema não reside no modelo matemático, que é impecável e consistente com os dados empíricos, mas na ideia de nada. A certa altura, depois de realçar insistentemente a pureza do nada originário, Vilenkin confessa que as leis da física quântica permitem a emergência do espaço-tempo. (7) Em outras palavras, o “nada” é descrito por uma função de onda.
As veleidades platônicas de Vilenkin são abertamente defendidas por outro expoente da cosmologia moderna, Alan Guth. Daquilo que sabemos sobre a inexistência primitiva do espaço-tempo, Guth infere que as leis da mecânica quântica têm uma existência independente: “Se as leis são apenas propriedades dos objetos, como essas leis podem operar quando os objetos não existem?”. (8)
O resultado a que somos conduzidos é estarrecedor. De acordo com a física moderna, a ausência do espaço-tempo não exclui a existência de coisas. Uma dimensão incorpórea é obtida quando a mecânica quântica é aplicada ao espaço-tempo. Não estamos diante de mais uma forma de misticismo quântico, mas de um modelo matemático que se harmoniza perfeitamente com tudo o que sabemos sobre o funcionamento da natureza. Assim, um materialista reacionário está adstrito a uma saída inglória: atirar-se de modo suicida contra o colosso que vem sendo erigido pelas publicações mais reputadas. Além de quixotesca, a atitude dos recalcitrantes é estúpida. Não foi ontem que a ciência começou a mostrar que aquilo que enxergamos é a manifestação de uma realidade mais profunda. Desde a época de Copérnico, a humanidade esclarecida aprendeu a desconfiar daquilo que é imediatamente revelado pelos sentidos.
O antigo materialismo está morto. Os cosmólogos quânticos descortinam uma dimensão ontológica sutilíssima. Por conseguinte, o materialista tem de encarar a hipótese de que o estrato mais profundo da realidade é feito de bits de informação, de objetos incorpóreos que determinam o comportamento dos fenômenos, como num programa de computador. E não deixemos de notar que uma versão ateia do realismo platônico torna-se mais palatável quando pensamos na distinção entre o genótipo e o fenótipo: de fato, o conhecimento das bases metafísicas dos fenômenos genéticos não parece ter violentado a consciência materialista.
Richard Carrier é um dos materialistas mais salientes da atualidade. Ontólogo, advogado do ateísmo, historiador cético da Antiguidade e negador da existência histórica de Jesus, ele faz uma concessão importante: o materialismo não está necessariamente atrelado à noção de um espaço-tempo substancial. Assim, numa realidade plenamente material, “se houvesse outros materiais [além do espaço-tempo], eles seriam apenas coisas impensantes que povoam o cosmo”. (9)
“Coisas impensantes”. Carrier é generoso. Com alguma liberdade exegética, inferimos que os materiais mencionados podem ser bits de informação, ainda que Carrier pareça hostil a qualquer tipo de platonismo. Realmente importantes são apenas as consequências lógicas das teses de um pensador, e o fato é que Carrier define a matéria como uma substância (originalmente) impensante: “por ‘natureza’ entendemos um Universo não senciente”. (10)
A mesma opinião é compartilhada por Dan Barker, outro proeminente defensor do ateísmo. Barker sustenta que o Universo pode ter uma causa exterior ao espaço-tempo, e que o materialismo não é incompatível com a existência de entidades incorpóreas e impessoais. (11) Mais uma vez, o conceito de mente determina a extensão do conceito de matéria.
O filósofo James Brown também é digno de nota. Platônico e ateu, Brown está certo de que o platonismo não é necessariamente infenso a um materialismo refinado. O busílis reside inteiramente na distinção entre o conceito de coisa incorpórea e o conceito de design inteligente. Nem toda causa incorpórea é uma causa teleológica. (12) O cerne da realidade pode ser radicalmente intangível, mas o ateísmo só seria refutado se se provasse que o homem é resultante do planejamento divino. Nas palavras de Brown, “O platonismo que eu defendo [...] é compatível, ouso dizer, com um espectro muito amplo de visões religiosas e políticas, do cristianismo agostiniano ao marxismo ateu”. (13) Tudo isso parece muito razoável. Por que diabos, então, muitos estrilam quando ouvem que o materialismo não está cingido ao mundo dos objetos tangíveis e comezinhos? Por que o sexo, o pão, o suor, a carne e o trabalho seriam mais reais do que uma partícula que se esvai numa nuvem de probabilidades? Estariam terrivelmente enganados aqueles que procuram libertar o materialismo de um preconceito roceiro?
Como pudemos constatar, estamos em boa companhia quando definimos a matéria como aquilo que não é originalmente mental. Além de Carrier, de Barker e de Brown, vários filósofos encontraram no conceito de substância impensante uma maneira de proteger o materialismo da saraivada de ataques indoutos. Basta mencionarmos ainda os nomes de Vladimir Lenin e de David Papineau.
O liberalismo desses materialistas contrasta com a tacanhice de alguns autores que ainda imaginam que o cerne do mundo tem de ser idêntico ao que podemos enxergar. Slavoj Žižek, por exemplo, identifica com perspicácia uma das deduções lógicas mais impressionantes da definição de matéria proposta por Lenin. Porém, de modo um tanto ingênuo, tenta ridicularizar a indulgência do filósofo russo:
[...] mesmo uma figura grandiosa como Lenin não era materialista: como aponta sua crítica, em Materialismo e empiriocriticismo ele propõe como definição mínima do materialismo a afirmação de uma realidade “objetiva” externa que existe independentemente de nossa mente, deixando em aberto (baseando-se no progresso científico, e não na filosofia) qualquer outra determinação dessa realidade. De acordo com esse critério, no entanto, o idealismo de Platão não seria materialista, visto que as ideias existem sem dúvida alguma, independentemente de nossa mente? (14)
Ora, qual seria a reação de Žižek diante das estranhezas reveladas pelos desenvolvimentos mais recentes da física? O que ele diria ao aprender que o espaço-tempo não é uma realidade substancial? O fato óbvio é que a teoria quântica da gravitação não é menos extravagante do que o realismo platônico. Aliás, nem mesmo os átomos de Demócrito eram mais palpáveis do que as formas de Platão. É mesquinha a ênfase posta na diferença entre uma partícula invisível e uma entidade rigorosamente inextensa.
Surge aqui, porém, uma questão incômoda: no platonismo ateu, qual a origem das leis que regem nosso Universo? O que explica a existência de um conjunto específico de leis da física? Por que, por exemplo, a força da gravidade é proporcional ao inverso do quadrado da distância, e não do cubo da distância? De onde provém, em suma, a seleção de uma estrutura matemática singular?
Nada garante que possamos obter uma resposta. Há um denso nevoeiro sobre o núcleo ontológico da realidade. Mesmo assim, algumas explicações engenhosas merecem ser mencionadas.
O físico Lee Smolin elabora um modelo em que as leis da física resultam da evolução por seleção natural. (15) A evolução, como sabemos, é um processo temporal; logo, Smolin não é capaz de explicar a gênese do tempo. Além disso, a seleção natural pressupõe a existência de leis que tornam possível o processo seletivo.
A deficiência do modelo de Smolin é contornada pelo físico Max Tegmark, um proponente atual do platonismo ateu. Tegmark advoga uma modalidade estática de seleção natural: num multiverso constituído de bits de informação, há um vasto sortimento de estruturas matemáticas (o análogo das mutações biológicas); casualmente, nós habitamos uma estrutura matemática particular. Em outras palavras, uma circunstância antrópica determina a vigência de um conjunto específico de leis naturais em nosso Universo. (16)
Ora, seria um louco quem fizesse o materialismo cosmológico depender de uma fundação tão incerta. Nós simplesmente ignoramos a origem das leis fundamentais da física. Por maior que seja o brilhantismo de um Tegmark, o fato é que a ciência não está em condições de esquadrinhar a causa primeira. Consequentemente, parece-nos que o agnosticismo é a melhor alternativa disponível. Contudo, apressemo-nos a dizê-lo, nosso agnosticismo é bastante limitado, referindo-se somente à hipótese deísta.
Notemos que o deísmo não é particularmente danoso para o materialismo cosmológico. Pelo contrário, a mera criação das leis da física não impede que as operações da matéria cega adquiram uma grande densidade ontológica. Portanto, deixemos a causa primeira nas brumas do mistério e alojemos o materialismo nos momentos posteriores ao big bang. Há aqui um espaço de manobra bastante amplo, no qual a matéria desempenha com liberdade um papel criativo.
Assim, radicando nossas investigações no trecho da história cósmica que pode ser abordado com alguma segurança, temos elementos suficientes para a fundação de uma boa ontologia materialista. Os cientistas mostram, por exemplo, que a aleatoriedade quântica porejou e ainda poreja em diversos sítios da realidade que habitamos, instilando uma causalidade indomável no big bang, nas mutações biológicas e em outros eventos. De qualquer modo, independentemente da aleatoriedade que extravasa do mundo quântico, sabemos que nenhuma inteligência é necessária para operar a evolução das espécies.
Aplicada ao cenário que acabamos de expor, nossa definição de matéria implica que o ser originalmente impensante é o intervalo que se estende do big bang ao surgimento do homem: um processo longo, tortuoso, violento, oneroso e confuso; um percurso repleto de coágulos ontológicos, de adensamentos da causalidade cega. Um dos coágulos mais desconcertantes é o período desmesurado em que o planeta Terra foi habitado exclusivamente por seres unicelulares. A vida surgiu há pelo menos 3,5 bilhões de anos; mas os primeiros organismos pluricelulares só despontaram há cerca de 700 milhões de anos. Logo, durante quase três bilhões de anos, existiram somente seres unicelulares em nosso planeta. Outro coágulo terrível é a crueldade inerente à evolução por seleção natural. Apenas a autonomia da natureza poderia explicar a ocorrência desses eventos.
Certa vez, Samuel Johnson formulou contra Berkeley uma objeção que, modernizada, soaria assim: se o mundo é um videogame criado por Deus, por que os seres vivos possuem uma estrutura interna tão complexa? (17) Alguém diria que os personagens do jogo Mortal Kombat necessitam das vísceras que são espalhadas pela tela? No entendimento de Johnson, a existência de entranhas introduz um espessamento injustificável na película do mundo fenomênico, refutando o imaterialismo de Berkeley. Do mesmo modo, percebemos que a história que começou no big bang contém uma série de espessamentos ontológicos. São regiões que evidenciam a cegueira da natureza.
Para os partidários do materialismo integral, a matéria abre os olhos nos organismos conscientes, ao cabo de um longo processo evolutivo. Com base na anatomia comparada, eles argumentam que os poderes mentais estão estreitamente vinculados ao desenvolvimento do sistema nervoso. A magnitude da faculdade racional, por exemplo, está correlacionada com a opulência neural de algumas regiões específicas do cérebro.
Os espiritualistas estão a par dessa correlação. De acordo com um velho argumento, o cérebro humano não é o substrato dos eventos mentais, mas uma espécie de instrumento transceptor que medeia entre a alma e os entes materiais. O problema é que algumas filigranas bastante curiosas depõem contra a hipótese do transceptor. Por que, por exemplo, um córtex avolumado e altamente complexo seria necessário para a conexão entre a faculdade racional e o mundo sensível? Um nódulo singelo não seria o bastante? A razão humana não poderia interagir com um cérebro semelhante ao de um cão? Além disso, por que a danificação do aparelho transceptor às vezes acarreta a mudança da personalidade? Sem dúvida, tais fatos parecem implicar uma relação mais íntima entre a mente e o cérebro.
Diante do exposto, julgamos que nossa definição de matéria é boa. Mostramos que o ateísmo e a teoria da evolução da mente podem ignorar, em certa medida, as aventuras da ontologia fundamental. Mostramos que o destronamento do espaço-tempo não está associado à validação da hipótese do design inteligente. E também não pensamos que a existência de seres inextensos é necessariamente prejudicial à crença no caráter derivado da mente humana. Porém, é hora de mostrarmos que nossa conceituação requer alguns retoques importantes.
Como vimos, o materialismo divide-se nas vertentes cosmológica e psicológica. Quando ambas estão integradas numa cosmovisão unitária, a definição de matéria que propusemos é adequada. Há, no entanto, uma complicação, pois elas não são logicamente indissociáveis. Não há contradição entre o criacionismo e a existência de corpos pensantes. (18) Voltaire, por exemplo, tinha plena consciência da soltura conceitual que existe entre o materialismo cosmológico e o psicológico. Certa vez, ele perguntou: “Que homem ousará assegurar, sem uma impiedade absurda, que seja impossível ao Criador dar à matéria o pensamento e o sentimento?”. (19) Assim, quando o materialismo psicológico está agregado ao teísmo, a seguinte definição parece mais satisfatória: a matéria é o corpo humano.
Referimo-nos aqui ao corpo humano prosaico, ao objeto imediatamente compreendido pelo senso comum, ao corpo nosso de cada dia, e não a uma entidade circunscrita por um trabalho aprofundado de elucidação ontológica. Consequentemente, pensamos que as alegações de espíritas e de parapsicólogos são interessantes para balizar uma demarcação profícua do conceito de matéria.
Percebamos, no entanto, que o materialismo psicológico sai enfraquecido de sua associação com o criacionismo. Como dissemos há pouco, o materialista integral considera que a mente é um produto de uma coisa impensante. Além disso, por maior que seja nossa caridade epistêmica, acreditamos que o materialismo psicológico não é elástico o suficiente para suportar a hipótese da existência de uma mente oriunda do ser impensante, caso esta mente seja concebida como uma entidade que, no curso da evolução, não permanece aderida a seu substrato corpóreo. William Hasker, por exemplo, argumenta que a mente humana pode ser semelhante a um pólipo que se transforma num animal de vida livre (a analogia é nossa). (20) De fato, não há nenhuma inconsistência lógica entre o ateísmo e a ideia de processos mentais independentes do cérebro. Trata-se de uma possibilidade teórica. (21) O que ocorre é que, a nosso ver, a descoberta de espíritos incorpóreos violentaria o conceito de materialismo psicológico. De qualquer modo, temos aqui uma disputa de palavras; a demarcação entre o material e o imaterial é arbitrária. Nós simplesmente optamos por definir o materialismo com base nas noções de mente e de corpo humano.
Agora que nos livramos dos conceitos obtusos de matéria, resta-nos apresentar a definição de materialismo científico. Ei-la: trata-se do materialismo que surge como uma consequência contingente do conhecimento científico. Não sabemos a priori se ele é verdadeiro; as coisas poderiam ser diferentes. Houve uma época em que o criacionismo possuía credibilidade científica; alguns milagres bem atestados fariam um ateu honesto mudar de opinião; um médium poderia fornecer informações que não pudessem ser obtidas pelas vias ordinárias; a descoberta de fósseis de coelhos em rochas do Cambriano refutaria o evolucionismo.
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Notas (Clique pra voltar ao texto)
(1) Materialismo y empiriocriticismo, p. 48.
(2) An Outline of Philosophy, p. 108.
(3) Language and Problems of Knowledge. The Managua Lectures, p. 144.
(4) C. ROVELLI, A realidade não é o que parece: a estrutura elementar das coisas, p. 188.
(5) A Universe from Nothing, p. 161.
(6) On the Origin of Everything. Disponível nesta página. Acesso em: 12 jul. 2017.
(7) Many Worlds in One. The Search for Other Universes, p. 205.
(8) Guth’s Grand Guess. Disponível nesta página. Acesso em: 12 jul. 2017.
(9) R. CARRIER, Sense & Goodness Without God. A Defense of Metaphysical Naturalism, p. 68.
(12) Platonism, Naturalism, and Mathematical Knowledge, p. 161.
(14) A monstruosidade de Cristo, pp. 399-400, nota 131.
(15) The Life of the Cosmos, cap. 7.
(16) Our Mathematical Universe. My Quest for the Ultimate Nature of Reality, cap. 12.
(17) Carta de Samuel Johnson a George Berkeley, 10 de setembro de 1729. In: G. BERKELEY, Obras filosóficas, pp. 361-362.
(18) Mencionemos como prova o caso de La Mettrie, um materialista psicológico paradigmático que professava o agnosticismo com relação à existência de Deus. Em certas ocasiões, porém, o autor de O homem máquina vai além do agnosticismo: “Não é que eu ponha em dúvida a existência de um ser supremo; parece-me, ao contrário, que o maior grau de probabilidade é por ela”. Cf. L’homme machine, pp. 96-97. O exemplo da antropologia bíblica também é significativo. Originalmente, o dualismo corpo-alma era totalmente estranho às crenças judaicas e cristãs. “Tanto a cosmovisão científica quanto a cosmovisão bíblica assumem – em contraposição a alegações espiritualistas de reencarnação, projeção astral e séances com os mortos – que, sem nossos corpos, nada somos”. Cf. D. MYERS, A Friendly Letter to Skeptics and Atheists, p. 31.
(19) Lettres philosophiques, p. 93.
(20) Metaphysics. Constructing a World View, pp. 75-76.
(21) Podemos citar o exemplo da vertente ateia do espiritismo. Os pesquisadores espíritas holandeses Zaalberg van Zelst e Matla de La Haye asseveram que “os espíritos mais inteligentes protestam positivamente contra a ideia de Deus”. Apud R. GUÉNON, The Spiritist Fallacy, p. 146.