Ver também:
Capítulo I, parte 1 (Tales de Mileto)
Capítulo I, parte 2 (Anaximandro de Mileto)
Capítulo I, parte 3 (Anaxímenes de Mileto)
Capítulo I, parte 4 (apreciação geral do materialismo jônio)
Capítulo II, parte 1 (Pitágoras e os pitagóricos)
Capítulo II, partes 2 e 3 (Xenófanes e Heráclito)
Capítulo II, parte 4 (Parmênides e os eleatas)
Capítulo II, parte 5 (Empédocles de Agrigento)
Capítulo II, parte 6 (Anaxágoras de Clazômenas)
Em nossa coletânea “História do materialismo”, escrita por Giuliano Thomazini Casagrande, estamos hoje abrindo uma exceção na sequência temporal pra discorrer sobre teleologia e materialismo na obra do filósofo francês René Descartes, autor que constitui o objeto da pesquisa de doutorado de nosso iniciador e professor. A pedido dele, fizemos essa breve quebra, mas sem sair da coletânea em si, pra expormos alguns dos resultados de seus estudos, que continuarão em breve a ser publicados conforme o desenrolar da reflexão. Esperamos também retomar logo o fio da meada e prosseguir a postagem de textos de Giuliano sobre a filosofia grega. A quem visita o blog, lê e compartilha os textos, desejamos um ótimo 2015 de muita prosperidade e esclarecimento!
Eu não posso perdoar Descartes: bem quisera ele, em toda a sua filosofia, prescindir de Deus; mas não pôde evitar fazer com que ele desse um piparote para pôr o mundo em movimento; depois disso ele não precisa mais de Deus. (1)
Pascal
As guerras culturais travadas na atualidade indicam que, para muitas pessoas simpáticas ao teísmo, o darwinismo é a bête noire da cultura contemporânea. Elas não estão enganadas: de acordo com a biologia convencional, a evolução é um processo disteleológico. O próprio Darwin comparou o mecanismo evolutivo ao deslocamento natural do ar, um fenômeno que não requer uma causa inteligente: “Parece haver tão pouco planejamento na variabilidade dos seres orgânicos, e na ação da seleção natural, quanto na direção em que o vento sopra”. (2) O surgimento do ser humano equiparado à produção fortuita do vento: isso é certamente uma pedra de escândalo para a consciência religiosa. O teísmo não é compatível com a ideia de um processo evolutivo puramente naturalista ou materialista, em que a emergência da complexidade funcional dos organismos é atribuída a forças ininteligentes. Os termos “naturalismo” e “materialismo” são intercambiáveis e designam a cosmovisão segundo a qual a mente é um efeito, e não a causa, da matéria.
De todo modo, Darwin está longe de ser um inovador absoluto, ainda que sua teoria seja dotada de uma robustez científica sem precedentes. No século XVII, Descartes elaborou uma cosmogonia naturalista que gerou uma polêmica semelhante àquela iniciada na segunda metade do século XIX. Na verdade, excetuando algumas bólides de curto fôlego que cruzaram o céu da religião na Renascença (o nome do escorregadio G. C. Vanini é o primeiro que nos vem à cabeça (3) ), ela deflagrou o primeiro conflito significativo entre a ciência e a religião na modernidade. O que importa observar é que, tanto no caso de Darwin como no de seu precursor francês, a controvérsia é mais grave do que muitos imaginam. O problema teológico suscitado pelo evolucionismo naturalista não se reduz a uma questiúncula sobre a quantidade de tempo empregada na criação: Deus não poderia optar por um método de criação gradual? A palavra “dia” no livro de Gênesis comporta um sentido alegórico? Não nos enganemos: à parte essa disputa periférica, o que está em jogo é a eliminação da teleologia sobrenatural, ou seja, da ideia, central ao teísmo, de uma inteligência que engendra os componentes do Universo. Em vista disso, a doutrina da criação de Agostinho, tantas vezes evocada por teólogos ditos “progressistas”, de modo algum é compatível com o evolucionismo tal como o compreendem Descartes e a biologia convencional. Nos dias de hoje, um biólogo agostiniano diria, por exemplo, que uma razão seminal (ratio seminalis) irrompeu no oceano do Eoceno (nas entranhas de um organismo preexistente, presume-se), há cerca de 35 milhões de anos, e deu origem à primeira baleia moderna. (4) O problema é que as informações contidas nessa semente não foram geradas por causas secundárias; tais informações, que equivalem ao DNA da espécie, foram criadas por Deus no início do tempo e permaneceram dormentes até o momento oportuno. Agostinho, portanto, foi um criacionista, em que pese sua rejeição da interpretação literal da narrativa bíblica da criação. (5) O exemplo do Padre da Igreja mostra que muitos biólogos e educadores procuram mitigar o significado do embate entre o evolucionismo e a religião, como se a ciência fosse contrária apenas às crenças obsoletas de uma estirpe retrógrada de fundamentalistas religiosos, e não à própria teleologia. (6) Ora, somente a ignorância ou a desonestidade poderiam explicar a atitude dos que pretendem relativizar a importância da controvérsia capital dos tempos modernos: há, por acaso, assunto mais sério do que a abolição da teleologia? Quem poderia permanecer indiferente à ruína da ideia de providência divina? À luz dessas considerações, como parecem tacanhos os que querem reduzir tudo ao problema da interpretação literal dos dois primeiros capítulos do Gênesis!
A cosmogonia cartesiana foi exposta em duas obras principais, O mundo e Princípios da filosofia (há um resumo dessa teoria na quinta parte do Discurso do método). Ela é parte de um projeto mecanicista de explicação da natureza. Descartes reduz a matéria à extensão e concebe o Universo como a extensão em movimento. A gravidade, por exemplo, é identificada com a pressão exercida por algumas das partículas de extensão que compõem o Universo. Tais partículas, que formam um turbilhão ao redor da Terra, empurram os corpos pesados em direção ao centro do planeta. (7) Até mesmo as supostas ocorrências parapsicológicas (cuja existência Descartes admite acriticamente) são explicadas pela transmissão de partículas de formatos peculiares. (8)
Com base unicamente nas propriedades geométricas – tamanho, forma e movimento –, Descartes pretende explicar a totalidade dos fenômenos naturais. Assim, se a metafísica de Descartes é um conjunto de abstrações lívidas e descarnadas, sua física aplicada (que nada mais é do que a geometria acrescida da dimensão existencial) realiza um mergulho no mundo empírico. Nela temos um retrato das maravilhas infinitamente variegadas da natureza: os sistemas planetários, as camadas da Terra, as montanhas, as minas, a fosforescência das águas do mar, as lâmpadas perpétuas, os ímãs, os espíritos animais... Um panorama que não desapontaria um leitor do Cosmo de Humboldt.
É certo que a teoria cartesiana da matéria está longe de ser incontroversa. Leibniz foi um dos que o criticaram, objetando que a extensão pressupõe um fundamento dinâmico e inextenso. Conforme um dos argumentos aduzidos por Leibniz, a matéria desaba no nada se se nega a existência de elementos simples; ora, a extensão cartesiana é infinitamente divisível. (9) A matéria, portanto, não poderia ser reduzida à extensão. Para Leibniz, penetrar na estrutura íntima da matéria é descobrir um mundo fervilhante de substâncias simples e inextensas, as mônadas.
Da física pré-socrática à atual filosofia da teoria quântica de campos, a questão da essência da matéria tem sido intensamente discutida. Porém, o estudo crítico da teleologia não necessita tomar parte nessa sempiterna discussão, contanto, é claro, que a mente não seja considerada uma propriedade básica ou irredutível da matéria, como no estoicismo. (10) Quaisquer que sejam os constituintes fundamentais do mundo físico – partículas discretas, mônadas ou coisas tão exóticas quanto campos quânticos –, o importante para o debate sobre o naturalismo é saber se a mente está na origem do Universo, ou se ela é um derivado da evolução da matéria orgânica. (11) Em sua cosmogonia, Descartes formulou uma teoria em que a ordem complexa do mundo surge sem a participação de uma inteligência criadora. O exemplo do darwinismo mostra que a ciência contemporânea compartilha do ponto de vista naturalista (no sentido cosmológico) de Descartes: com efeito, desde Galeno, as maravilhosas adaptações orgânicas têm sido o tema preferido dos advogados da teleologia.
A importância da cosmogonia cartesiana para a história do materialismo é maiúscula. Descartes foi autor de uma filosofia que resvala no materialismo cosmológico estrito, também chamado de ateísmo (em contrapartida, é cediço que Descartes está a anos-luz do materialismo psicológico, doutrina segundo a qual a mente é uma função do cérebro). Trata-se efetivamente de uma ruptura com a tradição, uma vez que Descartes emerge de um período histórico – que compreende a Idade Média e a Renascença – dominado pelo pensamento teleológico. (12) Em sua história da ideia de evolução, Bowler enuncia: “A filosofia cartesiana da natureza procurou explicar a origem de todas as coisas em termos físicos, sem referência à criação sobrenatural. Deus não projeta as estruturas individuais do Universo”. (13)Uma coisa, com efeito, é dizer que Deus dá o ser à totalidade indiferenciada do mundo; outra, que Deus cria as configurações particulares do mundo (planetas, montanhas, olhos etc.). A existência bruta do Universo nada tem a ver com a forma como as coisas estão estruturadas, assim como a mera existência de um quadro é indiferente aos objetos nele pintados. O Deus cartesiano pode ser o criador e o conservador da substância extensa enquanto tal; porém, não se dá ao trabalho de cinzelá-la com vistas à formação de um cosmo.
Entretanto, poderíamos subscrever, sem pestanejar, a inclusão de Descartes na facção evolucionista? Ai de nós! As coisas não são tão simples. A cosmogonia cartesiana, de fato, prescinde da agência divina; o problema é que Descartes jamais apresentou sua cosmogonia como uma teoria verdadeira. Curiosamente, o precursor de Darwin permaneceu fiel ao criacionismo. Para utilizar uma expressão consagrada pelos detratores do darwinismo, a teoria evolucionista de Descartes tem a pretensão de ser “apenas uma teoria”. Acrescente-se a isso que a perspectiva criacionista defendida por Descartes abriga complicações internas capazes de siderar os exegetas.
Descartes é considerado um crítico consumado da teleologia, embora não se costume levar em conta a complexidade assombrosa de seu pensamento sobre o tema. Com o intuito de denunciar a candura dos que ignoram as complicações da filosofia cartesiana, Forlin menciona a seguinte opinião: “Inaugurador da filosofia moderna, o pensamento filosófico de Descartes não apresenta o nível de sofisticação e, o que é proporcional a isso, o nível de dificuldade interpretativa, das filosofias que o sucederam”. (14) Como veremos, a posição de Descartes com respeito à teleologia e os problemas exegéticos vinculados a ela escarnecem da ingenuidade dessa opinião.
Antes de tudo, fundamentado na nova astronomia dos séculos XVI e XVII, Descartes apresenta uma refutação da teleologia antropocêntrica, ou seja, da crença de que o Universo foi feito unicamente para o ser humano. Uma consequência da teoria de Copérnico era incompatível com essa crença: uma vez admitido o movimento anual da Terra, a ausência de uma paralaxe estelar detectável (pelos instrumentos da época) indicava a existência de uma distância exorbitante entre a órbita de Saturno (considerada então o limite do Sistema Solar) e a esfera das estrelas. Hoje sabemos que a luz da estrela mais próxima do Sistema Solar, Próxima do Centauro, leva mais de quatro anos para atingir a Terra. Também sabemos que nossa galáxia contém cem bilhões de estrelas e que o Universo observável contém ao menos cem bilhões de galáxias. Como se não bastassem tais cifras estarrecedoras, temos boas razões para acreditar que nosso Universo é apenas um componente de um multiverso infinito.
Em sua polêmica contra Copérnico, Tycho Brahe percebeu com clareza o caráter disteleológico do Universo representado pela nova astronomia: se o sistema heliocêntrico fosse verdadeiro, “a maior parte da Criação não seria útil a ninguém, a não ser que houvesse habitantes das estrelas”. (15) Descartes retoma o raciocínio de Tycho. Mas, diferentemente do astrônomo dinamarquês, sem o propósito de impugnar a teoria copernicana. Se o ser humano é a única finalidade da Criação, por que a maior parte do Universo permanece fora de nosso alcance? (16) As luas de Júpiter, por exemplo, estiveram invisíveis até que Galileu fizesse uso de seu telescópio – um artefato que deve sua existência somente à vontade humana de transcender as limitações da natureza. Ora, não seria ridículo acreditar que esses corpos celestes foram criados apenas para serem captados por um dispositivo que burla o funcionamento ordinário da natureza? Ciente da extrema improbabilidade dessa hipótese, J. Kepler julgou que, se Júpiter não fosse habitado por seres inteligentes, seus satélites seriam inúteis e deporiam contra a ideia de um cosmo dotado de propósito. (17) Kepler, portanto, necessitava postular uma pluralidade de mundos habitados para sustentar sua crença num Deus providente.
E quanto aos planetas visíveis da Terra a olho nu? A sabedoria piedosa sempre realçou sua utilidade para a navegação e para a satisfação do nosso senso estético. Porém, alguns pontos luminosos em movimento seriam suficientes para esses fins. (18) Resulta óbvio que a constituição fine-grained desses planetas é totalmente alheia às necessidades dos habitantes da Terra. A quem beneficiam, com efeito, as tempestades, os relâmpagos, as erupções vulcânicas e as auroras polares que ocorrem nesses recantos do Universo? Urano e Netuno, aliás, sequer são visíveis a olho nu.
Como afirmou Kepler, o Universo careceria de propósito se os corpos celestes fossem desprovidos de espectadores. Sabemos, no entanto, que a esperança de encontrar vida inteligente nos outros planetas do Sistema Solar é muito frágil. Pode-se dizer, assim, que o âmbito astronômico contém fatos disteleológicos análogos, por exemplo, àqueles estudados pela anatomia comparada. Os fatos astronômicos destituídos de propósito correspondem às homologias e aos órgãos vestigiais (poderíamos ainda mencionar, para efeito de comparação, fatos disteleológicos como o sofrimento dos animais causado por predadores, parasitas etc. e a extinção natural de criaturas pacíficas ou benfazejas). E nem mesmo precisamos sair de nosso planeta para encontrar mundos invisíveis semelhantes aos que povoam o espaço sideral. Muito já se disse que a superfície da Lua é mais conhecida do que as profundezas do oceano. Alguém diria que a estranheza das criaturas abissais foi feita para ser contemplada pelos seres humanos, ainda que nosso acesso a esse mundo dependa da construção e do emprego de um equipamento extremamente artificioso, o batiscafo? (19) Se seguíssemos o argumento de Kepler, seríamos obrigados a admitir a existência de habitantes inteligentes das fossas marítimas...
Uma importante distinção deve ser feita aqui. Descartes não endossaria a opinião de Kepler. Ele permaneceu agnóstico com relação à existência de vida inteligente fora da Terra, sem duvidar, no entanto, da existência de propósitos na natureza. Por mais estranho que pareça, Descartes crê que os fins de Deus podem existir independentemente da existência de inteligências capazes de usufruir dos benefícios da Criação. (20)
Ademais, Descartes não se restringe à crítica da teleologia antropocêntrica. Ele declara que os fins de Deus não podem ser conhecidos, em virtude da limitação de nosso intelecto. (21) Em resumo, Descartes defende a rejeição ontológica da teleologia antropocêntrica (o Universo não está adaptado exclusivamente às necessidades humanas) e a rejeição epistemológica da teleologia de per si (os fins de Deus existem, mas são inescrutáveis). Isso basta para mostrar a inépcia dos simplificadores que se contentam em afirmar que Descartes foi um inimigo das explicações teleológicas, ainda que, como ficará evidente no prosseguimento, a distinção estabelecida acima seja apenas uma fração da posição de Descartes com respeito à teleologia. Paul Janet observou com muita propriedade: “A opinião mais geralmente admitida é a de que Descartes proscreveu as causas finais; mas ainda é preciso saber até que ponto, em que sentido e por qual razão”. (22)
Retomemos: até agora, sabemos que Descartes defende a eliminação ontológica da teleologia antropocêntrica e a eliminação epistemológica da teleologia de per si. Já examinamos sumariamente a primeira; façamos agora o mesmo com a segunda.
Parece-nos altamente criticável a rejeição epistemológica da teleologia em geral. Numa de suas objeções à filosofia cartesiana, Gassendi reconhece que, na cosmovisão teísta, seria pretensão atribuir ao intelecto humano a capacidade de conhecer os propósitos mais recônditos de Deus. Porém, acrescenta Gassendi, o que dizer da anatomia e da fisiologia? Alguns órgãos não têm funções evidentes? (23) Alguém poderia titubear ao assinalar a função do olho ou a do coração? Confrontado pelo bom senso de Gassendi, Descartes não dá o braço a torcer e reitera que “não se pode imaginar que alguns fins de Deus são mais fáceis de descobrir do que outros; pois todos eles estão igualmente ocultos no abismo imperscrutável de sua sabedoria”. (24)
Descartes e Gassendi argumentam no interior de uma perspectiva criacionista. Contudo, é óbvio que o estudo das funções orgânicas não necessita estar atrelado ao criacionismo. Criacionistas e naturalistas estão de acordo quanto à função do olho, por exemplo; a divergência diz respeito apenas à determinação da origem (natural ou sobrenatural) desse órgão. Que não se diga, portanto, que somente um criacionista poderia atribuir funções às partes dos organismos. As adaptações estão aí, ubíquas no mundo biológico; o criacionista, ao contrário do naturalista, acredita que uma inteligência é necessária para explicá-las.
Ao defender a rejeição epistemológica da teleologia em geral, Descartes pressupõe a existência dos fins (incognoscíveis) de Deus. Uma nova complicação surge quando descobrimos que a admissão de uma teleologia oculta não se harmoniza com o voluntarismo teológico advogado por Descartes em algumas ocasiões. (25) De acordo com essa estranha doutrina, Deus é o criador absoluto dos princípios lógico-matemáticos e dos valores morais, de modo que sua vontade não é determinada por nenhum parâmetro racional ou moral independente. Ora, como notou Leibniz em sua crítica ao voluntarismo cartesiano, se tudo depende da vontade de Deus para existir, a criação é um ato cego, irracional. (26) Em outras palavras, a adesão de Descartes ao voluntarismo dá origem a uma modalidade extravagante de criacionismo, na qual as causas finais simplesmente não existem. Nela, Deus é uma potência acéfala análoga à matéria impensante da cosmovisão materialista; a diferença é que, no voluntarismo, a ordem complexa do mundo é criada perfeita e acabada de uma única vez, por um fiat divino, e não por um processo de tentativa e erro como a zoogonia de Empédocles-Lucrécio ou a seleção natural. Daí a questão que se nos impõe: como conciliar as passagens voluntaristas de Descartes com a admissão, feita em outros lugares, da existência dos fins (incognoscíveis) de Deus? Não sabemos. Toda solução proposta seria puramente especulativa, uma vez que os textos cartesianos nada fazem além de revelar a existência de duas concepções contraditórias.
Até agora examinamos a perspectiva criacionista de Descartes. Perspectiva que já aparece como singular, deveras, pois, além de negar a cognoscibilidade das causas finais existentes na natureza (condição do argumento criacionista clássico, o argumento do desígnio), põe a admissão da existência de tais fins em tensão com a defesa do voluntarismo teológico. Jamais na história do pensamento tivemos notícia de uma versão tão bizarra e maneirista de criacionismo. No entanto, o criacionismo cartesiano contém ainda uma complicação importante, a qual trataremos de expor logo a seguir, para concluir a primeira parte da análise da posição de Descartes com respeito à teleologia.
Descartes, como vimos, sustenta que todos os fins de Deus são igualmente inacessíveis ao intelecto humano. Contudo, num caso especial, Descartes permite-se determinar a função de algo criado por Deus. Há uma passagem da sexta meditação em que as sensações são descritas como adaptações úteis para a conservação do corpo ao qual estamos intimamente unidos. (27) Por meio dos sentidos, adquirimos informações úteis sobre o que pode favorecer ou prejudicar nossa saúde: alimentos benéficos ou nocivos, temperaturas adequadas ou danosas etc. Para Descartes, a finalidade das sensações é a única acessível ao intelecto finito. No entanto, o que justifica tal afrouxamento da regra epistemológica estabelecida alhures, segundo a qual os fins de Deus são impenetráveis ao entendimento humano? Conseguimos imaginar uma única resposta convincente: é que, no caso especial da união da alma e do corpo, a alma (consciência) atribui um valor ao seu corpo, às sensações que ela experimenta; portanto, teríamos aí uma finalidade interna, pois oriunda da união estreita entre a mente atribuidora de valores e o objeto valorado. Conheço uma finalidade específica, pois sou seu autor; ao mesmo tempo, tal finalidade inere a uma parte da natureza, pois eu e meu corpo (o objeto da valoração) formamos uma única entidade. Posso também atribuir funções, por exemplo, a um relógio; porém, nesse caso, não componho uma unidade com o objeto de minha valoração, de modo que as finalidades atribuídas permanecem externas ao relógio.
Concluímos aqui a primeira parte de nossa análise. O resultado já revela a existência de uma arquitetura filosófica bastante impressionante. Descartes foi autor de uma cosmovisão criacionista altamente complexa e problemática, a qual compreende os seguintes componentes básicos (segundo a análise feita até o momento): 1) a rejeição ontológica da teleologia antropocêntrica; 2) a rejeição epistemológica da teleologia em geral; 3) uma doutrina teológica voluntarista que contradiz a admissão da existência de causas finais; 4) uma exceção (ao que tudo indica, justificada) à proibição de conhecer as causas finais. Na sequência, veremos de que maneira a elaboração de uma cosmogonia naturalista afeta a compreensão da posição de Descartes com respeito à teleologia.
Bibliografia
BOWLER, P. J. Evolution. The History of an Idea. Berkeley: University of California Press, 1989.
CÍCERO. On the Nature of the Gods. Londres: William Pickering, 1829.
DESCARTES, R. Oeuvres publiées par Charles Adam et Paul Tannery. Paris: Vrin, 1996.
DARWIN, C. The Autobiography of Charles Darwin and Selected Letters. Nova York: Dover, 1958.
DICK, S. J. Plurality of Worlds. The Origins of the Extraterrestrial Life Debate from Democritus to Kant. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.
FORLIN, E. O papel da dúvida metafísica no processo de constituição do cogito. São Paulo: Humanitas, 2004.
GALILEU GALILEI. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. São Paulo: Editora 34, 2011.
HASKER, W. Metaphysics. Constructing a World View. Downers Grove (IL): InterVarsity Press, 1983.
JANET, P. Preuves de l’existence de Dieu d’après Descartes. In: Revue des cours littéraires de la France et de l’étranger. Paris: Germer Baillière, 1867-1868.
KEPLER, J. The Harmony of the World. Filadélfia: American Philosophical Society, 1997.
KING, P. Body and Soul. In: MARENBON, J. (ed.). The Oxford Handbook of Medieval Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 2012.
KORTHOF, G. Common Descent: It’s All or Nothing. In: YOUNG, M.; EDIS, T. Why Intelligent Design Fails: A Scientific Critique of the New Creationism. New Jersey: Rutgers, 2006.
LEIBNIZ, G. W. Philosophical Papers and Letters. Dordrecht: Kluwer, 1989.
______; ARNAULD, A. The Leibniz-Arnauld Correspondence. Manchester: Manchester University Press, 1967.
McMULLIN, E. The Origin of Terrestrial Life: a Christian Perspective. In: BERTKA, C. M. (Ed.). Exploring the Origin, Extent, and Future of Life. Philosophical, Ethical, and Theological Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.
OLSON, R. Science Deified & Science Defied. The Historical Significance of Science in Western Culture. Vol. 2. Berkeley: University of California Press, 1995.
PAPINEAU, D. Philosophical Naturalism. Oxford: Blackwell, 1993.
PASCAL. Pensées. Dijon: Victor Lagier, 1835.
RUSSELL, B. An Outline of Philosophy. Londres: Routledge, 2009.
VANINI, G. C. Oeuvres philosophiques. Paris: Charles Gosselin, 1842.
Notas (Clique pra voltar ao texto)
(2) The Autobiography of Charles Darwin and Selected Letters, p. 63.
(3) Nos Diálogos sobre os maravilhosos mistérios da natureza, rainha e deusa dos mortais (1616), Vanini brinca com algumas hipóteses materialistas audaciosas, como a seguinte: o primeiro ser humano, que era quadrúpede, surgiu da putrefação de macacos, porcos e rãs, dadas as semelhanças anatômicas e comportamentais que existem entre nós e esses animais. Vanini acrescenta que, de acordo com alguns ateístas, somente os etíopes descendem de macacos. Cf. Oeuvres philosophiques, p. 214. A menção à putrefação indica, obviamente, que estamos diante de uma versão da clássica teoria da geração espontânea, segundo a qual pequenos animais como ratos são gerados pela matéria em decomposição. Além disso, temos aqui, ao que parece, o primeiro registro da ideia de descendência simiesca do ser humano, o que constitui uma evidência de que hipóteses evolutivas com um traço de sofisticação já circulavam em 1616. É por isso que, não obstante o comentário de Herschel sobre o “enigma dos enigmas”, os sábios modernos não estavam num breu absoluto quando meditavam sobre a origem das espécies. Imaginemos o resultado explosivo que sairia da combinação da hipótese transformista de Vanini com a zoogonia (não evolutiva) de Empédocles-Lucrécio, a qual contém um bosquejo primitivo da teoria da seleção natural. Ambas estavam disponíveis no início da Idade Moderna, mas ninguém teve a ideia de conjugá-las, o que teria dado origem à antecipação mais flagrante da teoria darwiniana.
(4) Não cabe a nós dizer como os adeptos dessa tese deveriam lidar com o problema da ausência de transições abruptas na filogenia. Por acaso um buldogue necessitaria ser portador de uma razão seminal para dar origem a um filhote com um focinho ligeiramente mais curto? Não parece evidente que a doutrina de Agostinho supõe a ocorrência de saltos que interrompem o contínuo filogenético? A “evolução” agostiniana, assim, estaria próxima da doutrina das criações sucessivas de Agassiz.
(5) E. McMULLIN, The Origin of Terrestrial Life: a Christian Perspective, p. 91.
(6) “Ah, mas não há nenhuma incompatibilidade entre o evolucionismo e a teleologia sobrenatural”. Seria verdade o que pregam os conciliadores? Pensemos, por exemplo, na impressionante variedade de raças caninas que foi obtida a partir da domesticação do lobo, por meio de cruzamentos seletivos (as diferenças entre os cães podem ser maiores do que aquelas que distinguem as espécies ou mesmo os gêneros). Alguém julgaria necessário atribuir o comprimento das pernas do bassê, ou o porte avantajado do mastiff, à ação criadora de uma divindade? Os fenômenos patentes nos canis de criação mostram que não há mistério algum na evolução, e que o mecanicismo mais brutal é suficiente para explicar o aparecimento de novas espécies. Assim, considerando-se o prosaísmo disteleológico da evolução darwiniana, é provável que muitos conciliadores tenham em mente algo mais vultoso, a produção sobrenatural de sistemas biológicos complexos. Porém, a admissão de intervenções sobrenaturais é incompatível com a tese da descendência comum de todos os seres vivos deste planeta. Se um órgão foi produzido por um designer, esse órgão não evoluiu. Evolução supõe fluidez, e não surgimentos abruptos. Em outras palavras, a doutrina das criações sobrenaturais jamais explicaria a existência das homologias e dos órgãos vestigiais. Cf. G. KORTHOF, Common Descent: It’s All or Nothing, p. 43. Daí a aporia com que se defrontam os conciliadores: por um lado, o surgimento sobrenatural de novidades biológicas viola a cadeia filogenética; por outro, a seleção natural torna redundante a ideia de um designer dos organismos. Tertium non datur. Ou ficamos com o evolucionismo materialista, ou com a velha e obsoleta doutrina das criações especiais.
(7) Princípios da filosofia, quarta parte, art. 20, AT IX B 210.
(8) Além da telepatia e da clarividência, Descartes menciona a crença, comum no século XVII, de que a aproximação do assassino provoca o sangramento das feridas do morto. Cf. Princípios da filosofia, quarta parte, art. 187, AT IX B 308-309.
(9) G. W. LEIBNIZ, Rascunho de uma carta a Arnauld. In: G. W. LEIBNIZ & A. ARNAULD, The Leibniz-Arnauld Correspondence, p. 88.
(10) Devemos aos estoicos as formulações clássicas do argumento do desígnio. Cf. CÍCERO, On the Nature of the Gods. O interessante é que os estoicos não postulavam um Deus transcendente, mas um Universo material dotado de consciência que se identificava com a própria divindade. Em outras palavras, a física estoica rejeitava a dualidade entre o artífice e sua obra.
(11) A linha de demarcação entre o natural e o sobrenatural é arbitrária. A história da ciência revela que a noção de matéria é tão fluida quanto o rio de Heráclito. Há, de fato, um abismo entre os grãos duros de Demócrito e os campos quânticos. Como observou Russell, “A matéria tornou-se tão fantasmagórica quanto qualquer coisa numa sessão espírita”. Cf. An Outline of Philosophy, p. 108. Daí a necessidade de um conceito mais relaxado de materialismo. Porém, como dar ao termo um significado útil? Sugerimos que o materialismo seja equacionado com o ateísmo e com o fisicalismo em filosofia da mente. Tanto um como o outro podem fazer abstração (dentro de certo limite) da configuração básica assumida pela matéria no transcorrer da evolução da ciência. “Material” (ou “natural”), assim, seria mais proveitosamente definido como aquilo que não é irredutivelmente mental. Cf. D. PAPINEAU, Philosophical Naturalism, p. 30 ss. Acrescentemos que a vertente psicológica do materialismo não deveria ser flexível a ponto de ser compatível com a hipótese da existência de uma mente oriunda de causas impensantes, no caso em que esta mente fosse considerada uma entidade independente do cérebro. William Hasker pode ser citado como um filósofo que defende a possibilidade de conciliar o emergentismo com a ideia de vida após a morte. Cf. Metaphysics. Constructing a World View, pp. 75-76. Não há realmente nenhuma inconsistência entre ambos. O que ocorre é que, a nosso ver, o materialismo psicológico seria refutado pela descoberta de seres espirituais emergentes.
(12) O filósofo medieval Nicole Oresme (c. 1320 – 1382) é amiúde representado como um proponente notório de explicações naturalistas. De fato, Oresme procurou atribuir causas naturais a fenômenos como os nascimentos monstruosos, os quais costumavam ser interpretados como portentos. No entanto, Oresme repudia o materialismo cosmológico quando compara o Universo a um relógio construído por um relojoeiro divino. Cf. R. OLSON, Science Deified & Science Defied. The Historical Significance of Science in Western Culture. Vol. 2, p. 27. Por outro lado, o materialismo psicológico teve uma boa aceitação durante a Idade Média e a Renascença, sendo professado por pensadores como Jean Buridan, Marsílio de Inghen, Nicolau de Amsterdam e Giacomo Zabarella. Cf. P. KING, Body and Soul, pp. 514-515.
(13) Evolution. The History of an Idea, p. 29 (grifo do autor).
(14) E. FORLIN, O papel da dúvida metafísica no processo de constituição do cogito, p. 7.
(15) S. J. DICK, Plurality of Worlds. The Origins of the Extraterrestrial Life Debate from Democritus to Kant, p. 74.
(16) Princípios da filosofia, terceira parte, art. 3, AT IX B 104.
(17) “Para o benefício de quem quatro luas cingem Júpiter, e duas, Saturno, em seus cursos, como esta nossa única Lua cinge nossa habitação?”. Cf. The Harmony of the World, livro V, p. 497.
(18) De acordo com Simplício, o aristotélico do Diálogo de Galileu, “Os corpos celestes, ou seja, o Sol, a Lua e as outras estrelas, que não estão destinados a outro uso a não ser àquele de servir à Terra, não têm necessidade de outra coisa que do movimento e da luz para alcançar seu fim”. Cf. GALILEU, Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano, primeira jornada, p. 144.
(19) Consideramos teologicamente indefensável a doutrina segundo a qual Deus criou o Universo para si mesmo. Pois um ser perfeito jamais teria necessidade de buscar algum tipo de satisfação. Só se busca o que não se tem. Ora, perfeição é sinônimo de plenitude.
(20) Descartes a Chanut, 6 de junho de 1647, AT V 54-55.
(21) Princípios da filosofia, terceira parte, art. 2, AT IX B 104.
(22) Preuves de l’existence de Dieu d’après Descartes, p. 767.
(23) Quintas objeções, AT VII 309.
(24) Quintas respostas, AT VII 375.
(25) Nas Sextas respostas, Descartes recorre ao exemplo da criação do mundo no tempo para expor sua doutrina voluntarista: “Não foi por ter visto que era melhor que o mundo fosse criado no tempo do que desde a eternidade, que ele [Deus] quis criá-lo no tempo [...]. Mas, ao contrário, porque ele quis criar o mundo no tempo, por isso é melhor assim do que se ele tivesse sido criado desde a eternidade”. Cf. AT IX A 233. Assim, podemos dizer que, se Deus não contempla razões ao criar, uma massa de excremento seria equivalente a um Universo belamente estruturado. Certamente, um criacionismo desse tipo seria repugnante aos olhos dos partidários do design inteligente.
(26) Leibniz a Christian Philipp, janeiro de 1680. In: G. W. LEIBNIZ, Philosophical Papers and Letters, p. 273.
(27) De acordo com Descartes, os sentimentos (ou sensações) foram “postos em mim [por Deus] apenas para significar ao meu espírito quais coisas são convenientes ou nocivas ao composto do qual ele é parte”. Cf. Meditações, AT IX A 66.