23/06/2013

História do materialismo ‒ Cap. I: os materialistas jônios (parte 3)


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O blog “Materialismo ‒ Filosofia” continua agora a série “História do Materialismo”, redigida pelo nosso filósofo e professor Giuliano Thomazini Casagrande, na expectativa de suprir a falta de material online sobre o assunto e de estar publicando uma das maiores contribuições de nosso empreendimento para o debate ateísta e materialista entre os usuários da rede mundial em língua portuguesa. Embora as publicações não tenham sido feitas de forma regular, ficaremos muito gratos com o retorno das(os) leitoras(es) com críticas, sugestões, opiniões e correções a cada nova parte lançada. Boa leitura e uma ótima reflexão!


3. Anaxímenes de Mileto

Anaxímenes (c. 588 a.C. – 524 a.C.) é o terceiro nome da tríade de grandes materialistas milésios. De acordo com a tradição, foi um discípulo ou um companheiro intelectual de Anaximandro. Sua única obra conhecida, da qual perdura um fragmento, recebeu o título que se tornou comum entre os filósofos gregos: Sobre a natureza.

Sem ostentar o mesmo fulgor e a mesma audácia especulativa de Anaximandro, Anaxímenes elaborou uma teorização mais comedida que fornece a única solução adequada ao problema fundamental do monismo milésio. Essa ideia genial e extremamente próspera consiste na explicação das transformações da matéria por meio da redução da dimensão qualitativa a um fundamento quantitativo.

Para Anaxímenes, o ar (aer, pneuma) responde à interrogação sobre o princípio de todas as coisas. Tal como o apeiron de Anaximandro, trata-se de uma massa de matéria automovente, eterna e infinitamente extensa (é mais provável que, para esses filósofos, o infinito fosse apenas algo muito grande). No entanto, a arché de Anaxímenes não é mais uma matéria qualitativamente indeterminada: conforme Teofrasto-Simplício,

Anaxímenes, companheiro de Anaximandro, afirma, como este, uma única matéria ilimitada como substrato; não indeterminada, como Anaximandro, mas determinada, chamando-a de ar: diferencia-se pela rarefação ou pela condensação segundo a substância. (1)

Vê-se que Anaxímenes propôs um mecanismo racional para explicar as metamorfoses da substância única, o qual é capaz de suprir as deficiências dos modelos teóricos de Tales e de Anaximandro: a variação de densidade. (2) Todas as coisas são resultado da condensação ou da rarefação do ar. O fogo é ar rarefeito, e a condensação progressiva dá origem ao vento, às nuvens, à água, à terra e às rochas. (3) Vem daí a teoria cosmogônica de Anaxímenes, mais inteligível do que a de seus antecessores. A Terra, discoide, formou-se pela condensação do ar e flutua como uma folha sobre uma almofada da mesma matéria. Igualmente planos e flutuantes, porém ígneos, os demais corpos celestes são filhos da Terra, produtos da rarefação do vapor de água que se desprende do solo. (4) Como no caso de Anaximandro, o relato cosmogônico de Anaxímenes é construído sem nenhuma referência a causas sobrenaturais, sejam os deuses do panteão olímpico ou a inteligência que, de acordo com a interpretação mais aceita do monismo milésio, seria inerente à matéria primordial.

Anaxímenes valeu-se de um experimento científico rudimentar para justificar a correlação entre a temperatura e a densidade da matéria: constatamos que o ar expelido pela boca aberta é quente, ao passo que o mesmo ar soprado pelos lábios comprimidos é frio. A respeito disso sentenciou o físico Victor Stenger: “Esse é um fato empírico e nós falamos de ciência real aqui, ainda que a teoria específica seja primitiva”. (5)

Sendo a densidade um conceito quantitativo (referente à presença maior ou menor de matéria num dado espaço), Anaxímenes procurou explicar as propriedades do mundo físico por meio da redução das diferenças qualitativas à variação quantitativa. Difícil seria exagerar a importância desse princípio para a subsequente história da ciência. Lembremos, por exemplo, que os elementos da química moderna são diferenciados pelo número de prótons contidos no núcleo atômico, e que os estados da matéria dependem do grau de coesão e de energia das moléculas que a constituem. De fato, o caráter matemático das ciências está vinculado à possibilidade de um tratamento quantitativo dos fenômenos. Isso se tornou particularmente claro a partir da revolução científica dos séculos XVI e XVII. O livro da natureza, afirmou Galileu, está escrito em linguagem matemática. A propósito, a existência de qualia (propriedades irredutíveis da experiência subjetiva) é vista atualmente como o grande obstáculo para a explicação científica da consciência. Uma cor pode ser reduzida às propriedades – passíveis de expressão matemática – da ação de determinada onda eletromagnética visível sobre o sistema nervoso. Mas isso explicaria o caráter fenomenal da cor percebida?

No único fragmento atribuído à sua própria lavra (o qual, na verdade, seria uma paráfrase produzida ou preservada por Aécio (6) ), Anaxímenes estabelece uma analogia entre a alma humana e o ar cósmico: “Como nossa alma, que é ar, nos governa e sustém, assim também o sopro e o ar abraçam todo o cosmos”. (7) Anaxímenes fundamenta sua pneumatologia no fato arquiconhecido de que a manutenção da vida depende da respiração, donde provém a antiga crença popular de que o sopro da vida abandona o corpo na hora da morte. Anaxímenes sustenta, portanto, que o ar (em sua forma invisível) é o princípio animador que permeia não apenas o corpo humano, mas todo o Universo, sendo que os antigos gregos associavam a vida à capacidade de movimento próprio.

A identificação entre a alma e o sopro é um componente da cultura universal. Consideremos algumas ocorrências linguísticas que refletem essa crença: espírito deriva do latim spiritus, “sopro” ou “vento”, e o grego psyche é oriundo de psychein, “respirar”. Curiosamente, o latim anima, o grego pneuma e o hebraico ruach compartilham desse mesmo significado. Lemos, por exemplo, no Antigo Testamento: “Formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou-lhe nas narinas o fôlego da vida [ruach], e o homem tornou-se alma vivente”. (8)

Essa é, sem dúvida, uma concepção materialista. Para Anaxímenes, a alma é uma entidade sutil, embora a sutileza, aqui, seja o apanágio do ar, uma substância inteiramente material. Não devemos confundi-la com a alma estritamente imaterial da metafísica cartesiana, a qual resulta da anulação cética da totalidade do mundo empírico. Tal contraste não passou despercebido a Holbach:

A palavra espírito não nos apresenta outra ideia que aquela do sopro, da respiração, do vento; assim, quando nos dizem que a alma é um espírito, isso significa que sua maneira de agir é semelhante à do sopro que, invisível, opera efeitos visíveis, ou que age sem ser visto. Mas o sopro é uma causa material, é o ar modificado; não é de modo algum uma substância simples, tal como aquela que os modernos designam pelo nome de espírito. (9)

Anaxímenes foi o primeiro no Ocidente a dar uma expressão filosófica à ideia, historicamente muito fecunda, de uma alma aérea. Vemo-la tornar-se, no pitagorismo e no estoicismo, o componente de um dualismo materialista que deve ser cuidadosamente distinguido de um dualismo legitimamente metafísico. Dos antigos pitagóricos aos modernos espíritas e parapsicólogos, impõe-se o conceito de uma alma corpórea que, quando separada da matéria “grosseira”, perambula pelos espaços etéreos.

Nas seções dedicadas a Tales e a Anaximandro, vimos de que maneira a distinção entre o materialismo lato sensu e o materialismo stricto sensu aplica-se aos milésios, e quais objeções podem ser formuladas contra a admissão de uma inteligência material irredutível. Para não nos repetirmos além do necessário (somos autorizados a supor que Anaxímenes também foi um materialista em sentido lato), consideremos agora outro rasgo do pensamento milésio de grande significação para a história do materialismo: a preterição das explicações teleológicas.

Em que pese a provável admissão de uma divindade material dotada de alguma forma de consciência, (10) Anaxímenes formulou, como Tales e Anaximandro, explicações naturalistas para uma multidão de fenômenos naturais. Assim, o arco-íris não é mais considerado uma manifestação da deusa Íris, mas atribuído à ação dos raios solares sobre uma nuvem compacta e impenetrável. De modo análogo, Zeus perde os direitos sobre a produção das condições meteorológicas: a compressão progressiva do ar provoca o surgimento das nuvens e da chuva; o granizo ocorre quando a precipitação atmosférica coalesce, e os relâmpagos, quando as nuvens são cindidas por rajadas de ventos. (11) Como observou McKirahan, “Anaxímenes acredita que os deuses e deusas mitológicos nada têm a ver com a origem ou com a manutenção do Universo. O ar faz isso. Quaisquer divindades que existam à parte do ar divino devem ter uma função vastamente reduzida”. (12)

Isso não é motivo para um teísta racional imaginar que a propensão naturalista de Anaxímenes contraria apenas a noção popular e mitológica de intervenção divina, como se as explicações teleológicas estivessem resguardadas no âmbito da teologia esclarecida dos filósofos. É verdade que o fragmento atribuído a Anaxímenes dá a entender que o ar exerce um tipo de governo sobre o cosmo, o que indica a ação de um substrato material inteligente e providencial. No entanto, até onde podemos julgar pelos testemunhos disponíveis, a ideia de desígnio divino não desempenha um papel significativo na filosofia da natureza de Anaxímenes. Isso explica o desapontamento de Platão em relação à filosofia natural praticada pelos pré-socráticos. Na célebre passagem do Fédon dedicada ao exame desse gênero de filosofia, Sócrates critica a escolha de entidades materiais impensantes como causas dos fenômenos: ossos, músculos e nervos não são a causa primária das ações humanas, e sim, instrumentos da inteligência. (13) Do mesmo modo, a ciência da natureza seria incompleta sem o reconhecimento da influência de um designer inteligente sobre a produção dos fenômenos. Com base nas considerações de Sócrates, Graham oferece o seguinte epítome da teologia de Anaxímenes: “Platão [...] não encontra em Anaxímenes uma aplicação adequada do caráter teleológico e providencial que o milésio atribui ao ar”. (14) Encontramos um retrato da cosmovisão teleológica platônica no Timeu, diálogo que evidencia o contraste entre o naturalismo pré-socrático e a crença no desígnio divino. Cumpre reparar, aliás, na grande semelhança entre os argumentos sustentados no Timeu e aqueles atualmente propostos pelos partidários do intelligent design.

No Dicionário histórico e crítico, ao falar da teologia dos milésios, Pierre Bayle faz uso de um eficiente sistema de classificação. Nele, Anaxímenes figura como uma espécie de ateu, pois, embora reconheça a existência de uma divindade (identificada com o ar), não afirma que o mundo foi gerado por sua inteligência: “Tales, Anaximandro e Anaxímenes são culpados de ateísmo em segundo grau, assim como Epicuro”. (15) A classificação de Bayle põe em evidência um traço importante da filosofia dos milésios, que se aproxima do materialismo estrito ao postular a existência de uma divindade que age em plena conformidade com as leis da natureza. Assim, se o primeiro grau de ateísmo corresponde à negação tout court da existência de Deus, o segundo implica na autonomia conferida à ordem natural.

Diante dessa característica do pensamento milésio, Stenger julgou que o antagonismo entre ciência e religião remontaria aos primórdios da filosofia ocidental. (16) Notemos, entretanto, que a ciência milésia não corresponde à nossa ciência; poucos filosofemas pré-socráticos possuem validade científica. Assim, seria mais acertado dizer que, a despeito da correção histórica da tese de Stenger, a importância filosófica dos pré-socráticos reside em outra esfera, mais ampla: na simples elaboração de explicações racionais, as quais não estão necessariamente atreladas à cosmovisão naturalista (Anaxágoras, por exemplo, será autor da primeira formulação filosófica do argumento do desígnio no Ocidente). O conflito entre o racionalismo e o dogmatismo, com efeito, é mais profundo do que o conflito entre o naturalismo e o sobrenaturalismo.


Bibliografia

BARNES, J. Filósofos pré-socráticos. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BAYLE, P. Dictionnaire historique et critique. Paris: Desoer, 1820.

BORNHEIM, G. (org.). Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1998.

CÍCERO. On the Nature of the Gods. Londres: William Pickering, 1829.

D’HOLBACH. Système de la nature. Paris: Fayard, 1990.

GRAHAM, D. W. Explaining the Cosmos: The Ionian Tradition of Scientific Philosophy. Princeton: Princeton University Press, 2006.

GUTHRIE, W. K. C. A History of Greek Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. (V. I. “The Earlier Presocratics and the Pythagoreans.”)

______. The Greek Philosophers. Londres: Routledge, 2013.

KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. The Presocratic Philosophers. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

MCKIRAHAN, R. D. Philosophy Before Socrates. Indianápolis: Hackett, 1994.

PLATÃO. Fédon. Edimburgo: Williams & Norgate, 1863.

STENGER, V. God and The Folly of Faith: The Incompatibility of Science and Religion. Amherst, NY: Prometheus, 2012.

Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Editora Vida, 1994.


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) SIMPLÍCIO apud G. BORNHEIM (org.), Os filósofos pré-socráticos, pp. 28-29.

(2) Guthrie menciona o fato de que o mecanismo genético postulado por Anaximandro (separação dos contrários) não passa de uma conjetura desprovida de sustentação empírica, ao contrário daquilo que Anaxímenes julgou ser a variação da densidade do ar. Cf. The Greek Philosophers, p. 28. Acrescentemos que o apeiron de Anaximandro jamais poderia ser uma entidade rigorosamente indeterminada, por mais completa que fosse a mistura dos contrários.

(3) Se, conforme Anaxímenes, há um contínuo que conecta todas as formas da matéria, o que poderia justificar a escolha do ar como elemento primário? A resposta, ao que tudo indica, reside no fato de que a atmosfera invisível é o estado mais natural da matéria.

(4) HIPÓLITO apud J. BARNES, Filósofos pré-socráticos, p. 92.

(5) God and The Folly of Faith: The Incompatibility of Science and Religion, p. 54.

(6) G. KIRK et alii, The Presocratic Philosophers, p. 159.

(7) Apud G. BORNHEIM (org.), p. 28.

(8) Gênesis 2:7.

(9) Système de la nature, Primeira Parte, cap. VII (grifos do autor).

(10) “Anaxímenes [...] ensinava que o ar era Deus […]”. Cf. CÍCERO, On the Nature of the Gods, Livro I.

(11) HIPÓLITO apud J. BARNES, Filósofos pré-socráticos, p. 92.

(12) Philosophy Before Socrates, p. 55.

(13) Fédon, cap. XLVII.

(14) Explaining the Cosmos: The Ionian Tradition of Scientific Philosophy, p. 48.

(15) Dictionnaire historique et critique, verbete Tales (nota D). De acordo com Bayle, há ainda um terceiro grau de ateísmo, imputado aos filósofos que negam a liberdade de Deus na criação.

(16) God and The Folly of Faith: The Incompatibility of Science and Religion, p. 53.

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