19/01/2012

O problema da ressurreição


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Colocação do problema

Para os apologetas, o problema é de grande importância. Eles raciocinam da seguinte forma: se a ressurreição é um fato histórico, nós estamos diante de um milagre divino, ou seja, de uma evidência da existência de Deus. De modo que o problema da ressurreição está vinculado ao problema mais importante da filosofia: o problema da existência de Deus. Em outras palavras, se os milagres são verdadeiros e um Deus criador existe, o materialismo cosmológico é falso. Trata-se de um dos argumentos tradicionais para a existência de Deus: o argumento dos milagres.

O problema da ressurreição diz respeito à historicidade dos relatos bíblicos. Eles contêm o registro de um fato empírico (literal) ou apenas uma lenda? De acordo com o pensamento de Paulo, se Jesus não ressuscitou realmente, como um homem de carne e osso, “é vã a vossa fé” (1 Coríntios 15:14). O problema da ressurreição está vinculado ao destino dos indivíduos, ou seja, à vida dos seres humanos como entidades empíricas. Se a ressurreição não é um fato histórico, mas apenas uma metáfora, o destino dos cristãos após a morte é o mesmo destino afirmado pelos materialistas: a dissolução do organismo humano consciente.

No entanto, a despeito da intenção apologética, a historicidade da ressurreição, se atestada, não invalidaria o materialismo cosmológico, pois um fato empírico (a ressurreição de um homem) não poderia servir de sustentação a uma hipótese metafísica, assim como o desaparecimento real de todas as consciências, com a exceção da consciência imediata, não seria uma comprovação do solipsismo. O fato da ressurreição nada teria a ver com uma hipótese teológica autêntica (referente a uma realidade transcendente); consequentemente, o materialismo continuaria verdadeiro, e nenhum problema existencial realmente importante seria solucionado. Nossa sede do Absoluto não se extingue com a continuidade da vida segundo os parâmetros empíricos. Uma consciência empírica é uma consciência determinada (limitada). Segundo Holbach, até mesmo os anjos (se eles existissem) viveriam separados de Deus por uma distância infinita (Le bon sens). Os anjos seriam criaturas irremediavelmente insatisfeitas, ou seja, constituídas pelo vazio. Para Fichte (A doutrina da ciência de 1794), assim como para Sartre (O ser e o nada), a existência dos seres finitos é caracterizada pelo esforço permanente em direção a um Absoluto impossível. Spinoza declarou: “Sei que não há termo de comparação entre o finito e o infinito; e que, assim, a diferença entre Deus e a maior e mais excelente coisa criada não é menor do que a diferença entre Deus e a última das coisas criadas” (Lettres sur les spectres et les esprits). Nas palavras de Wittgenstein,

A imortalidade temporal da alma humana, isto é sua sobrevivência eterna mesmo depois da morte, não só não está garantida como também a sua suposição não realiza de todo o que com ela se queria alcançar. É algum enigma resolvido pelo fato de eu sobreviver eternamente? Não é esta vida eterna tão enigmática como a presente? A solução do enigma da vida no tempo e no espaço está fora do tempo e do espaço (Tratado Lógico-Filosófico, proposição 6.4312).

De fato, é possível que os apologetas estejam corretos. Na melhor das hipóteses, estaríamos diante da realidade de uma ocorrência intramundana que apenas dá continuidade à vida empírica do ser humano: a perpetuação da existência condenada, da roda de Sansara. Há apenas duas possibilidades lógicas: a anulação ou a perpetuação da consciência empírica, de modo que o milagre da ressurreição seria incapaz de trazer a salvação. Esta só poderia existir na anulação da consciência empírica (a consciência circunscrita pelo espaço e pelo tempo). No entanto, uma consciência indeterminada não seria consciência de nada. A anulação do eu finito (determinado) é a morte pura em simples.

De acordo com Strauss, milagres são impossibilidades lógicas. A causa absoluta (Deus) jamais poderia perturbar a cadeia de causas secundárias (finitas) por meio de atos arbitrários e particulares de interposição, mas atuaria na produção do próprio conjunto de causas secundárias (Life of Jesus). Dito de outra forma: uma causalidade metafísica é necessariamente externa ao sistema da natureza. Age globalmente, e não em setores delimitados. No entanto, a ocorrência de milagres pode ser rejeitada a priori ou a posteriori. Necessitaríamos apenas determinar as causas dos milagres em questão. Um milagre, como um evento empírico, poderia ser atribuído a uma causa metafísica ou a uma causa empírica. Um evento empírico com uma causa metafísica é uma impossibilidade, um círculo quadrado; por outro lado, um milagre causado por um agente empírico é possível, ainda que improvável. Uma entidade empírica causadora de milagres poderia ser um “deus contingente”, segundo a expressão de Sartre (O ser e o nada), ou qualquer outra parte do mundo espaço-temporal (um indivíduo dotado de poderes extraordinários, por exemplo). De acordo com o Antigo Testamento, os magos do Faraó realizavam prodígios análogos aos de Moisés (Êxodo 7:10-12), e ninguém pensaria em atribuí-los a uma potência externa ao sistema da natureza. De uma forma ou de outra, estamos no terreno do naturalismo puro. Devemos admitir, portanto, a possibilidade de “milagres” (causados por agentes empíricos). O próximo passo é investigá-los segundo um cálculo de probabilidades. Na “Nova vida de Jesus”, Strauss retoma a célebre argumentação probabilística de Hume: se admitimos que o milagre da ressurreição ocorreu, ele necessita ser provado com tal evidência, que a falsidade dessa evidência seria mais difícil de ser concebida do que a realidade que se pretende provar por meio dela. Hume investigou a existência de milagres na seção X (“Of miracles”) da “Investigação sobre o entendimento humano”. Laplace, um dos maiores expoentes da teoria das probabilidades, endossa o raciocínio de Hume: “Quanto mais um fato é extraordinário, mais ele tem necessidade de estar apoiado em provas fortes. Pois aqueles que o atestam, podendo ou enganar, ou estar enganados, estas duas causas são tão mais prováveis, quanto a realidade do fato é menos provável em si mesma”. “A probabilidade da mentira aumenta à medida que o fato se torna mais extraordinário” (Essai philosophique sur les probabilités). C. Sagan converteu a fórmula de Hume-Laplace num enunciado lapidar: “Afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias”. Há um provérbio romano que diz: “Eu não acreditaria na história mesmo se ela fosse contada por Catão”. Deveríamos pensar que a autoridade de um Catão ultrapassa a incredibilidade do evento relatado? Em certos casos, as palavras de um homem não são suficientes. O peso das evidências deve ser proporcional ao peso das alegações.

Com base nos pressupostos acima, propomos uma breve investigação da validade histórica do relato da ressurreição, a qual consistirá na análise das três fontes bíblicas das quais este relato é derivado: as cristofanias do relato paulino, a visão particular de Paulo e as cristofanias evangélicas.


As cristofanias do relato paulino

Paulo (1 Coríntios 15:5-8) elabora uma lista das aparições do Jesus ressurreto: primeiro a Cefas (Pedro), depois aos doze (o grupo de discípulos íntimos), depois a quinhentos discípulos, depois a Tiago, depois a todos os apóstolos, e por último ao próprio Paulo. A intenção dessa enumeração é fornecer uma prova do caráter histórico da ressurreição.

Paulo é o escritor mais próximo dos eventos relatados (primeira a Coríntios foi escrita por volta do ano 57, ou seja, cerca de 25 anos depois). Mas Paulo não foi uma testemunha ocular dos fenômenos; em 1 Coríntios 15:3, ele afirma que “recebeu” as informações sobre as cristofanias. Segundo Gálatas 1:18-19, sabemos que tais informações foram transmitidas a Paulo por Pedro e Tiago (irmão de Jesus), durante uma estadia em Jerusalém; nas palavras de Paulo, “Depois, passados três anos, subi a Jerusalém para ver a Pedro, e fiquei com ele quinze dias. E não vi a nenhum outro dos apóstolos, senão a Tiago, irmão do Senhor”. Como explica Laplace, a probabilidade do evento relatado decresce proporcionalmente à distância (determinada pelo número de intermediários) entre ele e a última testemunha da série (Ibid.). Além disso, “a probabilidade de engano cresce à medida que o fato se torna mais extraordinário” (Ibid.). Paulo simplesmente admitiu a veracidade do que lhe foi dito. Depois de experimentar a sua cristofania particular, ele não se sentiu motivado a investigar a realidade das aparições relatadas por Pedro e por Tiago em Jerusalém. Ora, as cristofanias do relato em 1 Coríntios (das quais Paulo não foi uma testemunha ocular) são insuficientes para atestar a realidade de um milagre. E não há, além disso, milhares de testemunhas oculares de eventos extraordinários? Poderíamos citar, por exemplo, as aparições marianas de Fátima (Portugal) e de Međugorje (Bósnia e Herzegóvina), e uma infinidade de relatos de pretensas experiências paranormais em todas as épocas e lugares. A bíblia está repleta de histórias de aparições de anjos e demônios. Após sua morte, o taumaturgo pagão Apolônio de Tiana aparece a seus discípulos etc. Por acaso tais histórias são críveis? Por que os cristãos não encaram com a mesma seriedade as supostas aparições de Apolônio de Tiana ou os milagres atribuídos a Maomé ou ao imperador romano Vespasiano? Como afirma Ehrman,

É um fenômeno extremamente bem documentado o fato de que as pessoas algumas vezes têm visões de seus entes queridos que já morreram... Acontece o tempo todo. É muito bem documentado. Em muitos casos, quem passa pela experiência consegue conversar com a pessoa morta, abraçá-la e senti-la. Há casos documentados de várias pessoas terem passado por algumas experiências visionárias juntas, e não apenas visões de parentes. A Virgem Maria aparece a grupos de pessoas o tempo todo – há milhares de testemunhas. Eu acho que ela realmente apareceu? Não. Ou a avó realmente retornou dos mortos para visitar o quarto da neta? Não. Talvez essas coisas tenham acontecido. Mas é improvável. Na verdade, do ponto de vista do historiador, é praticamente impossível. Mas as pessoas alegam que acontece o tempo todo (Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?).

Na verdade, a própria bíblia fala de muitas outras ressurreições inverossímeis. Mateus menciona vários eventos sobrenaturais que acompanharam a morte de Jesus. De acordo com o evangelista, após um tremor de terra, “Abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam, ressurgiram. E, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa [Jerusalém] e apareceram a muitos” (27:52-53). Temos aqui um relato similar ao da ressurreição de Jesus: vários mortos ressuscitam e são vistos por muitas testemunhas. Ora, teríamos o direito intelectual de confiar num relato tão inverossímil? Trata-se realmente de um evento histórico? Ambos os relatos podem ser encontrado na mesma bíblia, no mesmo evangelho. Se o relato da ressurreição dos santos é apenas uma lenda, por que a alegação da ressurreição de Jesus mereceria um tratamento diferente? Paulo oferece algo que não tenha sido oferecido por Mateus? Além disso, teríamos o direito de perguntar: onde estão essas pessoas que, segundo a bíblia, ressuscitaram? Se devemos confiar nos evangelhos de Lucas e de João, o corpo do Jesus ressurreto era um corpo carnal como qualquer outro: capaz de interagir com outros objetos físicos e ingerir alimentos materiais (24:41-43). Então, ascenderam aos céus e agora viveriam em algum outro planeta do Sistema Solar?

Em suma, meros relatos não são suficientes para a comprovação de um fato extraordinário. Alguns fatos mostraram que o valor das testemunhas oculares foi superestimado. O físico Victor Stenger afirma que, nos EUA, várias pessoas condenadas – algumas no corredor da morte – foram inocentadas depois que evidências obtidas a partir do exame de material genético (DNA) provaram que as testemunhas oculares estavam enganadas (God: the failed hypothesis). Ora, no caso de pretensas ocorrências extraordinárias, o peso das alegações de testemunhas oculares decresce proporcionalmente à improbabilidade do evento; e Paulo não foi uma testemunha ocular das aparições que ele enumera. Ademais, estamos diante de relatos feitos por pessoas profundamente interessadas na causa do cristianismo. De acordo com Laplace, a existência de testemunhas interessadas é outro fator que leva à diminuição da probabilidade da ocorrência em questão (op. cit.).


A visão de Paulo

E quanto à visão do próprio Paulo, mencionada em 1 Coríntios e relatada em várias passagens de Atos? Na conclusão da lista de cristofanias de 1 Coríntios 15, Paulo menciona sua própria experiência: “e por último de todos apareceu também a mim, como a um abortivo” (v. 8). A aparição a Paulo é mencionada em continuidade com as anteriores, com a utilização do mesmo termo, o que nos leva a concluir que todas as aparições enumeradas são da mesma natureza. Qual seria, então, a natureza da visão de Paulo? Trata-se da visão descrita em algumas passagens de Atos, que apresentam versões discrepantes da conversão de Paulo. Paulo (Saulo, na época), de acordo com a bíblia, era um perseguidor de cristãos. Dirigia-se para Damasco (Síria) quando “subitamente o cercou um resplendor de luz do céu. E, caindo em terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues? E ele disse: Quem és, Senhor? E disse o Senhor: Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Duro é para ti recalcitrar contra os aguilhões. E ele, tremendo e atônito, disse: Senhor, que queres que eu faça? E disse-lhe o Senhor: Levanta-te, e entra na cidade, e lá te será dito o que te convém fazer. E os homens, que iam com ele, pararam espantados, ouvindo a voz, mas não vendo ninguém. E Saulo levantou-se da terra, e, abrindo os olhos, não via a ninguém. E, guiando-o pela mão, o conduziram a Damasco” (Atos 9:3-8). Atos 22:5-11 apresenta uma versão que contradiz a primeira: os indivíduos que o acompanhavam, agora, “viram, em verdade, a luz, e se atemorizaram muito, mas não ouviram a voz daquele que falava comigo”. E Atos 26:12-15, diferentemente das outras versões, afirma que os acompanhantes caíram com Paulo no chão (há outras discrepâncias que, por motivo de brevidade, não mencionamos). Tais contradições nos relatos da aparição a Paulo mostram o quanto os escritores do Novo Testamento estão preocupados com a exatidão histórica.

O livro de Atos é atribuído a Lucas, o autor do terceiro evangelho. O narrador de Atos, portanto, não acompanhou a experiência de Paulo no caminho de Damasco. Mais uma vez, não temos uma testemunha ocular das ocorrências extraordinárias.

Alguns fatos depõem contra a credibilidade da experiência de Paulo. O próprio apóstolo nos revela sua propensão aos estados mentais extáticos. Em 2 Coríntios 12:1-7, Paulo afirma que, se ele desejasse glória, poderia narrar uma superabundância de visões e revelações vivenciadas por ele próprio. No mesmo contexto, menciona a viagem de um homem ao “terceiro céu”, ao “paraíso”: “Em verdade que não convém gloriar-me; mas passarei às visões e revelações do Senhor. Conheço um homem em Cristo que há catorze anos (se no corpo, não sei, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi arrebatado ao terceiro céu. E sei que o tal homem (se no corpo, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi arrebatado ao paraíso; e ouviu palavras inefáveis, que ao homem não é lícito falar. De alguém assim me gloriarei eu, mas de mim mesmo não me gloriarei, senão nas minhas fraquezas. Porque, se quiser gloriar-me, não serei néscio, porque direi a verdade; mas deixo isto, para que ninguém cuide de mim mais do que em mim vê ou de mim ouve. E, para que não me exaltasse pela excelência das revelações, foi-me dado um espinho na carne, a saber, um mensageiro de Satanás para me esbofetear, a fim de não me exaltar”. Não há dúvida: estamos diante dos relatos de um visionário de marca maior (“se no corpo, não sei, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe”). Ora, sabemos que visões subjetivas são comuns em todas as épocas e lugares. Podemos selecioná-las ao nosso bel-prazer em todas as tradições religiosas antigas e modernas. Perguntamos: acaso a ocorrência de visões é suficiente para a validação de uma alegação extraordinária? Em Gálatas 1:15-16, Paulo utiliza palavras que denotam uma revelação interna: “Mas, quando aprouve a Deus... Revelar seu Filho em mim, para que o pregasse entre os gentios...”. Alguns elementos indicam que as experiências de Paulo poderiam ser atribuídas a ataques de convulsão ou de epilepsia. Como vimos na passagem de 2 Coríntios 12, Paulo declara: “E, para que não me exaltasse pela excelência das revelações, foi-me dado um espinho na carne, a saber, um mensageiro de Satanás para me esbofetear, a fim de não me exaltar”. Conforme seu próprio depoimento, Paulo tinha visões com freqüência. Em algumas passagens, Paulo alude à fragilidade de sua constituição física: “Porque as suas cartas [de Paulo], dizem, são graves e fortes, mas a presença do corpo é fraca, e a palavra desprezível” (2 Coríntios 10:10); “E vós sabeis que primeiro vos anunciei o evangelho estando em fraqueza da carne” (Gálatas 4:13). Paulo ainda afirma que seu dom de falar em línguas excedia o de todos os membros da igreja de Corinto: “Dou graças ao meu Deus, porque falo mais línguas do que vós todos” (1 Coríntios 14:18). Paulo refere-se à conhecida manifestação frenética tão comum em igrejas pentecostais dos dias de hoje. Assim, temos todos os elementos que nos permitem avaliar a probabilidade do evento extraordinário relatado pelo apóstolo: a ausência de testemunhas oculares; narrações contraditórias que demonstram uma falta de atenção à exatidão histórica; e uma forte propensão às visões extáticas mais fantásticas, talvez associada a uma constituição física enferma, de acordo com as informações da própria bíblia. Experiências similares às de Paulo ocorrem diariamente em todos os cantos do mundo. Deveríamos simplesmente acreditar nas palavras de todos aqueles que narram viagens à Atlântida, a Sírius, ao “terceiro céu” e ao paraíso?

Não há, em suma, nenhuma prova da realidade objetiva da aparição a Paulo. Devemos encará-la como uma mera visão subjetiva, ocorrida somente dentro de sua mente, conforme as declarações dúbias do mesmo: “se no corpo, não sei, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe”. Por outro lado, a determinação da natureza da visão de Paulo permite a determinação da natureza das aparições listadas em 1 Coríntios 15: algumas pessoas tiveram visões subjetivas análogas à do apóstolo, nada mais. Seria altamente temerário fundamentar a realidade dos relatos da ressurreição em evidências tão frágeis. Resta-nos a análise das aparições relatadas nos evangelhos. Forneceriam os evangelistas evidências extraordinárias?


As cristofanias evangélicas

Ora, a situação das narrativas evangélicas é ainda pior. Nenhum evangelho teve como autor um apóstolo ou uma testemunha ocular da vida de Jesus. Os evangelhos foram escritos entre 35 e 65 anos após a morte de Jesus, ou seja, seus autores viveram décadas após os supostos eventos relatados. Conforme Ehrman, “Nossa primeira referência ao fato de a tumba de Jesus estar vazia é o Evangelho segundo Marcos, escrito quarenta anos depois por alguém que vivia em outro país e que ouvira que ela estava vazia” (Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?). Além disso, os relatos que temos da ressurreição são baseados em tradições orais cultivadas por pessoas interessadas na propagação do evangelho. Conforme Laplace, a presença de testemunhas interessadas enfraquece a probabilidade da suposta ocorrência. Finalmente, as narrativas evangélicas são profundamente contraditórias. Os três fatos contribuem para debilitar a probabilidade do evento relatado.

Nas palavras de Ehrman, “Em nenhum outro ponto as diferenças entre os Evangelhos são mais claras do que nos relatos da ressurreição de Jesus” (Ibid.). Os relatos evangélicos da ressurreição, além de mutuamente discrepantes, contradizem as declarações de Paulo em 1 Coríntios 15. Este não menciona as aparições a mulheres, tão significativas nos evangelhos. Lucas e Paulo afirmam que Pedro (Simão, Cefas) foi o primeiro a presenciar uma aparição do Jesus ressurreto, mas nem Mateus nem João relatam esta aparição, e mencionam apenas aquela ocorrida diante de todos os discípulos. Paulo, por sua vez, não menciona a aparição aos dois discípulos que iam para o campo (uma aldeia chamada Emaús), relatada por Marcos e por Lucas. Isso poderia ser explicado pelo fato de que, comparada às aparições aos apóstolos e aos quinhentos cristãos, a aparição no caminho de Emaús seria (para Paulo) de importância reduzida, mas aquela aos quinhentos é ignorada pelos evangelistas, assim como a aparição ocorrida somente a Tiago, mencionada por Paulo. E uma segunda aparição aos apóstolos, a última da lista de Paulo, não é encontrada nos sinóticos, mas somente em João: na primeira ocasião, sem a presença de Tomé, somente dez apóstolos estavam presentes; Jesus volta a aparecer oito dias depois, desta vez para o grupo completo dos onze.

Os apologetas poderão dizer que nem Paulo nem os evangelistas pretendiam mencionar todas as aparições após a ressurreição. Mas este argumento não se aplica ao quarto evangelho, onde as aparições são enumeradas até a terceira (João 21:14). Temos, então, primeiramente, a aparição diante dos onze (João 20:19), ou seja, a segunda da lista de Paulo; em segundo lugar, aquela diante de todos os apóstolos (João 20:26), ou seja, a quinta da lista de Paulo; as aparições a Pedro e Tiago, a primeira e a quarta em Paulo, não são mencionadas, e tampouco aquela a quinhentas testemunhas. Ora, por que esta última seria omitida, se os onze apóstolos deveriam estar entre os quinhentos? No entanto, aquela aos sete apóstolos junto ao mar da Galiléia (João 21:1-14) não é considerada pouco importante para ser mencionada como a terceira aparição, embora nenhum episódio correspondente seja encontrado em Paulo ou em algum dos outros evangelistas.

Para piorar, lemos no início de Atos (1:3) que Jesus, após a ressurreição, foi visto por nada menos do que quarenta dias. No entanto, o evangelho de Lucas (24:1-53), escrito pelo mesmo autor de Atos, afirma que a última aparição post mortem de Jesus ocorreu no mesmo dia da ressurreição. A última aparição de Jesus, segundo Mateus, ocorre na Galiléia (28:16-20), e, segundo Marcos (16:12-20) e Lucas (24:13-53), nas cercanias de Jerusalém. Os dois relatos, evidentemente, não podem ser verdadeiros. Em Mateus, Jesus aparece às duas Marias na manhã da ressurreição, próximo a Jerusalém; por meio delas, manda os discípulos à Galileia, onde uma aparição diante eles, segundo Mateus, ocorre pela primeira e última vez (28:1-20). De acordo com Lucas, Jesus, no dia da ressurreição, aparece aos dois discípulos (no caminho de Emaús), a Pedro e aos onze, em Jerusalém, e manda-os permanecer nesta cidade, até que “do alto sejais revestidos de poder” (24:49). Isso ocorre somente, segundo Atos, no Pentecostes (1:4), ou seja, sete semanas depois. Se, portanto, Lucas está correto, os discípulos não puderam presenciar as aparições ocorridas na Galileia, relatadas por Mateus e por João; em contrapartida, se Mateus está correto, as três outras aparições aos discípulos nas proximidades de Jerusalém (conforme Lucas) não ocorreram.

E poderíamos listar várias contradições adicionais. Mencionemos somente algumas. De acordo com Lucas, Maria Madalena, Joana, Maria, a mãe de Tiago e algumas outras mulheres vão ao sepulcro, veem dois anjos dentro dele, retornam e relatam aos apóstolos e a outros aquilo que presenciaram (24:1-12); de acordo com Marcos, apenas três mulheres, entre elas Salomé em vez de Joana, visitam o sepulcro, veem somente um anjo (em vez de dois) e depois, com medo, nada dizem a ninguém (16:1-8); de acordo com Mateus, somente as duas Marias vão ao sepulcro, veem um anjo sentado sobre a pedra que ele havia retirado, retornam e encontram o próprio Jesus no caminho (28:1-10); de acordo com João, somente Maria Madalena vai ao sepulcro e encontra o local vazio; depois, numa segunda visita, ela encontra dois anjos no sepulcro, e o próprio Jesus ao seu lado (20:1-18).

Temos elementos suficientes para mostrar que os evangelhos não contêm as evidências adequadas para fazer jus à improbabilidade do fato relatado. Eles apresentam somente relatos contraditórios escritos várias décadas após os supostos eventos. Na verdade, crer nas narrativas evangélicas da ressurreição seria antievangélico: os próprios integrantes do círculo íntimo de Jesus, conforme os evangelhos, estavam numa situação epistemologicamente melhor do que a nossa, e mesmo assim só passaram a crer após a exibição de evidências sólidas: segundo Mateus, alguns discípulos duvidaram da ressurreição (28:17); segundo Marcos, os companheiros de Jesus não acreditaram nas alegações de Maria Madalena (16:9-11); Lucas declara que, para os apóstolos, as palavras das testemunhas do túmulo vazio “pareciam como um delírio” (24:11); e João apresenta a história de Tomé, que acreditou somente depois de ver os sinais do corpo de Jesus e tocá-lo (20:24-29).


Conclusão

De acordo com uma análise feita a sangue-frio, as evidências fornecidas pela bíblia são bastante frágeis. Os relatos evangélicos, escritos entre 35 e 65 anos após a morte de Jesus por pessoas profundamente interessadas na propagação do cristianismo, são eminentemente contraditórios. Eles não fornecem, portanto, evidências proporcionais ao caráter extraordinário da alegação da ressurreição. Vimos também que as evidências adequadas tampouco são fornecidas pelas cristofanias do relato paulino e pela narração da visão particular do apóstolo. De modo que a hipótese da ressurreição é incapaz de refutar o materialismo cosmológico. O fato acarreta graves conseqüências à fé cristã: “Se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1 Coríntios 15:14). Em outras palavras, se Jesus não ressuscitou, nenhum indivíduo deixará de ser aniquilado na ocorrência da morte. Como afirmam Borg e Crossan,

Tão fundamental é a factualidade histórica das narrativas da Páscoa para muitos cristãos que, se elas não aconteceram assim, o fundamento e a verdade do cristianismo desaparecem. Para enfatizar essa afirmação, um versículo de Paulo costuma ser citado [1 Coríntios 15:14]... Concordamos com essa declaração, mesmo que não consideremos que, intrinsecamente, ela aponte para a factualidade histórica de um tumulo vazio” (A última semana).

Em seguida, os autores deixam claro qual é o ponto de vista proposto como alternativa à factualidade histórica: o ponto de vista alegórico ou metafórico: “A idéia óbvia é que as parábolas podem ser verdadeiras – verdadeiras e cheias de verdade – independentemente de serem fatuais” (Ibid.). Trata-se de uma conhecida manobra da teologia liberal, a qual esvazia o discurso teológico de seu conteúdo empírico e concreto. Pois bem: se tudo é alegoria, qual cristão gostaria de ter uma vida post mortem alegórica? Nós, indivíduos de carne e osso, não somos alegorias. Apenas uma sobrevivência real (factual) poderia ser significativa para seres espaciais e temporais. O fato é um só: se um homem não ressuscitou, ele simplesmente morreu; se ele simplesmente morreu, o cristianismo não oferece nenhuma garantia de uma vida eterna real. Em outras palavras, a teologia cristã é desprovida de uma ligação com a vida das pessoas de carne e osso.


(Janeiro de 2012.)


Bibliografia

BORG, M. J. e CROSSAN, J. D. A última semana. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

EHRMAN, B. D. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? Rio de Janeiro: Ediouro, 2010.

FICHTE, J. G. Doctrine de la science. Paris: Vrin, 1980.

HOLBACH, BARÃO DE. Le bon sens. Georg Olms, 1970.

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LAPLACE, P. Essai philosophique sur les probabilités. Bruxelas: H. Remy, 1829.

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SARTRE, J.-P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1999.

SPINOZA, B. Lettres sur les spectres et les esprits. Mille et une nuits, 2004.

STENGER, V. God: the failed hypothesis. Prometheus Books, 2007.

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WITTGENSTEIN, L. Tratado Lógico-Filosófico. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1987.

(Nota: a fonte das citações bíblicas foi a tradução de João Ferreira de Almeida.)

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