23/02/2013

História do materialismo ‒ Cap. I: os materialistas jônios (parte 1)


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O blog “Materialismo ‒ Filosofia” tem a honra de apresentar a série “História do Materialismo”, que está sendo gradualmente redigida pelo nosso filósofo e professor Giuliano Thomazini Casagrande. Ela certamente suprirá uma lacuna entre o material existente na internet e consistirá numa das maiores contribuições de nossa iniciativa para o debate ateísta e materialista entre os usuários da rede mundial em língua portuguesa, sempre no espírito declarado do trabalho geral do autor, que também é o nosso, de “esclarecer as massas”. Não prometemos postagens regulares, mas esperamos o retorno das(os) leitoras(es) com críticas, sugestões, opiniões e correções a cada parte que formos lançando. Boa leitura e uma ótima reflexão!


Os que por primeiro filosofaram, em sua maioria, pensaram que os princípios de todas as coisas fossem exclusivamente materiais.

Aristóteles (1)


A matéria é o primário. A sensação, o pensamento e a consciência são o produto supremo da matéria organizada de um modo especial.

Lenin (2)


1. Tales de Mileto

A filosofia nasceu materialista na Jônia (região da costa oeste da Ásia Menor), no século VI a.C. Tales (c. 624-547), natural de Mileto, é geralmente considerado o fundador da filosofia ocidental. Suas contribuições à matemática e às ciências da natureza foram notáveis. Com efeito, uma antiga tradição credita a Tales a previsão de um eclipse solar ocorrido em 585 a.C. e a solução de diversos problemas geométricos. “Como matemático e astrônomo, ele tornou-se frio em relação a tudo o que era mítico e alegórico”. (3) A filosofia surgiu, de fato, em oposição à carência de justificação racional dos mitos, conforme as crenças registradas nos poemas de Homero e Hesíodo.

O materialismo professado pelos primeiros filósofos gregos mostra que a cosmovisão científica (baseada no método empírico) é tão antiga quanto a filosofia ocidental. É o bastante para calar os teólogos metafísicos que excluem o materialismo do âmbito das investigações filosóficas, e os cientistas iletrados que repudiam as abstrações indevidamente associadas à essência da filosofia.

Admitimos que Tales foi o fundador da filosofia ocidental ou de matriz europeia, e não julgamos que a tese do caráter exclusivamente ocidental da filosofia possa ser sensatamente sustentada diante de algumas evidentes manifestações filosóficas de matriz oriental. Mencionemos a escola indiana dos Carvakas, notável por seu indubitável racionalismo. Os Carvakas, que floresceram entre 600 e 400 a.C., professavam um materialismo em sentido estrito, semelhante ao de Epicuro e Lucrécio. (4)

Nenhum escrito de Tales chegou ao nosso conhecimento. Para ensaiarmos uma reconstrução de sua doutrina, só contamos com alguns relatos lacônicos e esparsos de doxógrafos como Aristóteles e Diógenes Laércio.

Como pioneiro da geologia, Tales propôs a primeira explicação científica (baseada no raciocínio e na observação) para os terremotos, em contraste com a mitologia grega, segundo a qual tais fenômenos eram imputados à fúria de Posídon, deus dos mares, alcunhado de “Treme-terra”. (5) Para Tales, a terra flutuava sobre o oceano, como um grande navio, e os terremotos eram causados pelo movimento das águas. Sêneca relata a opinião de Tales e expõe o argumento que a justifica: observamos que, durante sismos violentos, fontes de água emergem de fissuras na terra, e que eventos similares ocorrem em navios no oceano. (6) Ora, a moderna geologia não ensina algo muito diferente, quando associa os terremotos à deriva das placas tectônicas sobre o manto viscoso da Terra. De qualquer modo, o mais importante é ressaltar a atitude racionalista que Tales introduziu na cultura ocidental, em contraposição às crenças aceitas com base na autoridade da tradição e da revelação religiosa. A substituição do dogma pela razão, sem dúvida, foi a grande contribuição dos gregos à história humana.

Não se trata de dizer, contudo, que os primeiros filósofos gregos, como homens da razão, rejeitaram a teologia e abraçaram o materialismo em sentido estrito. Muitos estudiosos confundem a rejeição das explicações mitológicas com a afirmação do ateísmo. Nada mais distante da realidade. O que ocorreu de mais significativo foi que as fábulas desprovidas de justificação racional foram substituídas pelo discurso argumentativo – o qual pode, sem dúvida, versar positivamente sobre a existência de inteligências não derivadas da matéria. Como bem notou Jonathan Barnes,

Não devemos supor que homens racionais necessitam rejeitar resolutamente o sobrenatural. Estudiosos geralmente, e corretamente, contrastam as cosmogonias naturalistas dos filósofos milésios com histórias mitológicas tais como as que encontramos na Teogonia de Hesíodo. Mas a essência do contraste é às vezes deturpada: o significativo não é que a teologia deu lugar à ciência ou os deuses a forças naturais, mas, em vez disso, que fábulas não raciocinadas foram substituídas pela teoria raciocinada, que o dogma deu lugar à razão. A teologia e o sobrenatural podem ser tratados dogmaticamente ou racionalmente: se os pré-socráticos rejeitam as asserções vazias de piedade e poesia, essa rejeição de modo algum implica o repúdio de todas as coisas divinas e sobre-humanas. (7)

Com efeito, a teologia natural é uma parte da filosofia que procura fundamentar a crença na existência de Deus e determinar seus atributos sem recorrer à autoridade da revelação especial, ou seja, unicamente pela razão (pura, no caso do argumento ontológico, ou mesclada com a experiência, no caso dos argumentos cosmológico e teleológico). Destarte, as célebres “Cinco Vias” de Tomás de Aquino nada têm a ver com a mera recepção de dogmas. Do mesmo modo, seria ridículo imaginar que o deísmo dos filósofos Iluministas pertence à mitologia irreflexiva abandonada pelos materialistas jônios. Dignas de menção são as palavras de Sócrates, as quais devem servir de lema para todos os filósofos: “Para onde a razão, como uma brisa, nos levar, para lá devemos seguir”. (8) Se ela nos conduz a Deus, que assim seja.

Uma questão fundamental mobilizou os esforços teoréticos dos primeiros filósofos gregos: qual o princípio (arché) de todas as coisas? Em outras palavras, qual o ser originário? Nas palavras de Aristóteles,

Os que por primeiro filosofaram, em sua maioria, pensaram que os princípios de todas as coisas fossem exclusivamente materiais. De fato, eles afirmam que aquilo de que todos os seres são constituídos e aquilo de que originariamente derivam e aquilo em que por último se dissolvem é elemento e princípio dos seres, na medida em que é uma realidade que permanece idêntica mesmo na mudança de suas afecções. (9)

Aristóteles atribui a Tales a afirmação de que a água é a realidade originária. Ora, uma compreensão adequada desse filosofema exige que se faça uma distinção entre o materialismo lato sensu e o materialismo stricto sensu. No sentido mais amplo, o materialismo filosófico, também chamado de fisicalismo ou naturalismo (conforme uma denominação bastante usual na filosofia anglo-saxônica), afirma que a matéria (a realidade estudada pelas ciências empíricas) é tudo o que existe. Esta acepção alargada admite de bom-grado aquilo que Friedrich-Albert Lange – com respeito às cosmovisões de certos materialistas da Grécia Antiga – chama de “matéria pensante”, (10) ou seja, uma entidade análoga ao artífice cósmico do intelligent design e aos espíritos do espiritismo. No sentido estrito, o materialismo consiste na negação da existência de inteligências materiais primárias: deuses e espíritos não derivados da evolução da matéria orgânica. Este seria o materialismo científico, ou seja, estabelecido mediante a aplicação do método das ciências empíricas. (11) Como veremos, uma expressão inequívoca do materialismo em sentido estrito ocorrerá pela primeira vez somente na filosofia dos atomistas gregos (Leucipo, Demócrito, Epicuro). Antes disso, é altamente provável que os filósofos materialistas admitissem a existência das sensações e do pensamento como dados primários e irredutíveis.

A distinção que acabamos de estabelecer foi formulada, por exemplo, por Thomas Hobbes. No Leviatã, o filósofo inglês mostra que a existência de espíritos “incorpóreos” não é incompatível com a cosmovisão materialista em sentido amplo. Para Hobbes, Deus e os demais seres espirituais (angelicais e humanos), se existissem, seriam formados de uma matéria sutil – impalpável e imperceptível aos sentidos grosseiros. (12) Assim, dentro da perspectiva materialista (lato sensu), os termos “incorpóreo” e “imaterial” têm um sentido pouco rigoroso, como quando espíritas, parapsicólogos e congêneres empregam o termo “metafísica” para designar a ciência dos corpos astrais. (13) Nossa distinção tornar-se-á mais compreensível quando aplicada ao caso de Tales.

De acordo com Aristóteles, Tales teria enunciado duas proposições que, provavelmente, estão inter-relacionadas: “o magneto tem alma [isto é, vida] porque move o ferro”, (14) e “tudo está pleno de divindades”. (15) Se autênticas, tais proposições indicam que, para Tales, a matéria (água) é dotada de propriedades vitais irredutíveis, ou seja, não derivadas de um trâmite evolutivo. Hilozoísmo, portanto, é um termo que poderia ser adequadamente aplicado ao materialismo do primórdio da filosofia ocidental.

Na verdade, no que diz respeito à questão da origem do movimento, o materialismo em sentido estrito seria inconcebível sem um mínimo de hilozoísmo. Do contrário, cairíamos numa física teísta à la Descartes, na qual a matéria, definida como pura extensão inerte, depende de um princípio externo para ser posta em movimento. Em outras palavras, o conceito cartesiano de matéria não inclui em si a força e a atividade. Não admira, então, que Holbach (considerado o autor da “Bíblia do materialismo”, o Sistema da natureza) tenha sido obrigado a extravasar o quadro da física cartesiana em sua formulação do materialismo: “O movimento é tão essencial à matéria quanto a extensão”. (16)

Afirma Pierre Naville a respeito da relação entre o hilozoísmo e o materialismo de Holbach:

Se a matéria considerada bruta também é viva, todos os seres formam apenas uma imensa cadeia; essa ideia [...] também está presente em todos os deístas e materialistas ingleses e franceses dos quais Holbach se nutrirá. Eles retomam dessa maneira a antiga tradição dos sábios jônicos. A natureza é eternamente movente em todas as suas partes. (17)

Constatamos que, ao contrário do que muitos poderiam pensar, a filosofia ocidental nasce poderosa e sem uma gota de ingenuidade. Uma imensa tradição filosófica tem como ponto de partida a observação de que os minerais são dotados de vida simples (movimento). No entanto, Tales não forneceu uma prova válida para a asserção de que a força magnética é uma propriedade essencial da matéria. Diante do mesmo fenômeno, um mecanicista como Descartes jamais diria que os ímãs são animados. (18)

Num caso exemplar de potencial confusão entre o fornecimento de evidências científicas e a mera enunciação de suposições “acertadas”, Demócrito afirmou que a Via Láctea (percebida como uma trilha esbranquiçada que parece abarcar o céu noturno) era a luz de uma multidão de estrelas. Em 1610, essa conjetura foi confirmada com o auxílio do telescópio de Galileu. Ora, podemos dizer que Demócrito estava certo? De modo algum, pois a asserção do filósofo grego não é sustentada por evidências. O que, em ciência, equivale a nada. Observando o mesmo fenômeno, Aristóteles conjeturou que a Via Láctea era uma nuvem de gases incandescentes situada na atmosfera terrestre. (19) Consequentemente, nada nos autoriza a julgar que Demócrito tenha mais razão do que Aristóteles; ou que, no tocante ao magnetismo, Tales tenha mais razão do que Descartes. A não ser que sejamos condescendentes com a adivinhação no campo da metodologia científica.

Com respeito ao hilozoísmo, uma coisa é afirmar que a matéria move a si mesma; outra, que a sensibilidade e a inteligência são propriedades irredutíveis da substância do mundo. Hoje, em conformidade com o materialismo estrito, a maioria dos biólogos tende a considerar que a consciência é um resultado da evolução da matéria orgânica. Nas palavras de Ernst Mayr, um dos mais reputados biólogos do século XX, “A mente humana parece ter sido o produto final de uma concatenação de numerosas miniemergências, tanto nos nossos ancestrais primatas quanto nos hominídeos”. (20)

Interpretado apenas como um filósofo que confere animação à matéria em geral, Tales é um ateu, ou seja, um materialista estrito. A água, um elemento empírico dotado de movimento próprio, é o princípio de todas as coisas. “Tudo está pleno de divindades”, assim, seria um modo de dizer que o movimento é inerente ao Universo. No entanto, alguns doxógrafos atribuíram a Tales certas opiniões que o afastam do materialismo em sentido estrito. Aécio declara, por exemplo: “Tales: a inteligência do cosmos é o deus; porque o universo é animado e cheio de deuses; o úmido elementar está penetrado do poder divino, que o põe em movimento”. (21) Assumido o monismo materialista dos jônios, é certo que se trata da inteligência de uma divindade corpórea. Em consonância com Aécio, Diógenes Laércio registra as seguintes proposições da suposta autoria de Tales: “Deus é o mais antigo dos seres, pois é incriado. Mais belo é o universo, pois é obra de Deus”. (22) Observemos que a menção da beleza da criação divina constitui uma expressão do argumento do desígnio. De fato, seria difícil imaginar que o arranjo apresentado pelas partes do Universo não despertasse a admiração dos primeiros filósofos. Diógenes Laércio relata ainda o seguinte episódio da vida de Tales: “Alguém lhe perguntou se um homem pode ocultar aos deuses uma ação má: ‘Não’, respondeu Tales, ‘nem sequer um mau pensamento’”. (23) Se a divindade é capaz de ler nossos pensamentos, então a onisciência, ou algo próximo dela, está entre os atributos da matéria primordial concebida por Tales. Com efeito, de acordo com João Filopono, Tales teria dito “que a providência se estende aos extremos e nada escapa ao seu conhecimento, nem mesmo a menor coisa”. (24)

Não sabemos se as opiniões relatadas pelos comentadores supracitados são autênticas. Portanto, não podemos ser categóricos ao afirmar que Tales professava o panteísmo, embora pareça improvável que a frase “tudo está pleno de divindades” não implique que o pensamento seja uma propriedade primária da matéria. Afinal, o que seria de uma divindade desprovida de inteligência? Em contrapartida, um materialista estrito como Demócrito diria que o pensamento é um produto do movimento puramente mecânico das partículas. Delineia-se assim a questão que, segundo Lenin, está na origem das duas vertentes filosóficas fundamentais: a matéria é um produto da mente, ou o contrário? Os componentes da natureza são oriundos de causas impensantes, ou de um criador inteligente?

No caso da teologia de Tales, sob a condição de que os fragmentos que restaram de sua doutrina podem ser ajustados num sistema harmonioso, é evidente que estamos diante de uma divindade feita de matéria (água), ou seja, de uma entidade empírica. Notemos que a investigação de uma hipótese teológica empírica é da alçada das ciências empíricas, e que o materialismo científico ou estrito consiste na rejeição, mediante a aplicação do método empírico, da existência de uma inteligência irredutível composta de algum tipo de matéria.

Lange afirma que “A proposição admitida por Voltaire [...], ‘eu sou um corpo, e eu penso’, teria sido aprovada pelos primeiros filósofos gregos”. (25) Ora, uma mente corpórea é necessariamente uma estrutura biológica complexa. A fisiologia nos ensina que as capacidades mentais superiores estão vinculadas à complexidade cerebral. Repugnaria à razão, no entanto, admitir que aquilo que é complexo não teve um início mais simples; que as peças de um relógio, por exemplo, estiveram organizadas desde a eternidade. Com efeito, não seria absurdo conceber um ser desenvolvido que não tivesse passado por um desenvolvimento prévio? Além disso, a onisciência e a providência de uma divindade material não seriam sustentáveis diante do fato de que nenhum sinal é capaz de viajar mais rápido do que a luz no vácuo (aproximadamente 300 mil quilômetros por segundo). Assim, as cognições e as volições dessa entidade levariam no mínimo cerca de 100 mil anos para serem efetuadas numa área equivalente à Via Láctea (uma das bilhões de galáxias existentes). Se nosso universo observável tem um diâmetro de cerca de 92 bilhões de anos-luz, a única saída seria admitir a existência de um cosmo de dimensões bem mais modestas.

A crença na existência de uma divindade material irredutível pode ser insustentável à luz da ciência; porém, é de se ressaltar o procedimento científico que, em Tales, exibe seus bosquejos. Aristóteles relata que Tales foi conduzido à sua teoria pela observação da natureza; particularmente, pela constatação do vínculo essencial entre a água e os seres vivos:

Tales [...] diz que o princípio é a água (por isso afirma também que a terra flutua sobre a água), certamente tirando essa convicção da constatação de que o alimento de todas as coisas é úmido, e da constatação de que até o calor se gera do úmido e vive no úmido. Ora, aquilo de que todas as coisas se geram é o princípio de tudo. Ele tirou, pois, esta convicção desse fato e também do fato de que as sementes de todas as coisas têm uma natureza úmida, sendo a água o princípio da natureza das coisas úmidas. (26)

Dito de outro modo, os espermas dos animais são líquidos; os alimentos são úmidos; e, nas palavras de Simplício, “aquilo que é quente necessita de umidade para viver, e o que é morto seca”. (27) Tales conclui daí que a água é o princípio gerador e constituinte de todas as coisas. Não há dúvida de que estamos diante do argumento de um cientista. Diferentemente dos mitógrafos gregos, Tales procurou fornecer argumentos (baseados em evidências empíricas) para justificar suas opiniões. O Iluminismo nasce, assim, como um antídoto contra a loucura e a tolice inerentes à fé, aos dogmas e ao apelo à autoridade da tradição.

Uma versão moderna do argumento de Tales merece ser mencionada. Giambattista Vico (1668 – 1744) declara que “Tales começou com um princípio muito simples: água; talvez porque ele tenha visto abóboras crescerem na água”. (28) Tudo indica que Vico tomou conhecimento de alguns experimentos curiosos realizados desde Nicolau de Cusa (1401 – 1464), dentre os quais se notabilizou o do salgueiro, conduzido pelo alquimista belga Jean Baptiste van Helmont (1577 – 1644). (29) Ao chegar à conclusão de que todas as coisas são formadas unicamente de água transmutada, Van Helmont deu um novo alento à velha filosofia de Tales. Posteriormente, o experimento de Van Helmont foi replicado pelo grande químico inglês Robert Boyle (1627 – 1691), o qual utilizou abóboras em vez de um salgueiro. (30)

Podemos perceber com alguma facilidade que a argumentação lacônica atribuída a Tales não é válida. O materialismo (em sentido lato) não é adequadamente justificado pela constatação de que a vida é dependente da água. Digamos, portanto, que Tales foi um materialista de fato, e não de direito. Com efeito, Cícero não teve nenhuma dificuldade para associar a doutrina de Tales à crença na existência de uma divindade distinta do princípio material, (31) assim como outros puderam comodamente associá-la ao relato criacionista de Moisés. “No princípio criou Deus os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas” (Gênesis 1:1-2). “Pela palavra de Deus já desde a antiguidade existiram os céus e a terra, que foi tirada da água, e no meio da água subsiste” (2 Pedro 3:5). Tais passagens indicam que, no início, Deus criou um caos aquoso (a conexão entre a água e a matéria informe é autorizada pelo texto bíblico), e que o apóstolo Pedro fala da formação dos diversos componentes da natureza a partir desse fluido primordial. Assim, de acordo com as Escrituras, todas as coisas são oriundas da água, sem que o materialismo seja professado. (32) Do mesmo modo, Tales não necessitaria afirmar que a água é o princípio gerador ou a causa eficiente da formação dos corpos, mas apenas que este é o elemento (causa material) a partir do qual todas as coisas são produzidas por uma divindade ontologicamente distinta da matéria.

Não obstante a deficiência argumentativa de seu materialismo, seria injusto não reconhecer que o pai da filosofia ocidental foi autor de uma contribuição de valor perene, a qual pode ser analisada sob dois pontos de vista. Primeiramente, Tales foi um promotor da investigação racional em sentido amplo: um indivíduo que pôs em ação o pensamento crítico na tarefa de explicar o mundo. Essa atitude argumentativa provocou a clivagem entre a religião grega e a filosofia nascente, sendo o surto da razão na Grécia Antiga o acontecimento mais importante da história do Ocidente. Em segundo lugar, o racionalismo aparece qualificado nos argumentos de Tales, tratando-se de um racionalismo do tipo científico (empirista). É essencial observar que a racionalidade de uma argumentação não é indissociável da cogência. Conforme Barnes,

Aquilo que é racional nem sempre é correto; crenças raciocinadas são frequentemente falsas; e o raciocínio – mesmo o raciocínio bom e admirável – não é invariavelmente claro e cogente. Poucas opiniões pré-socráticas são verdadeiras; menos ainda são bem fundamentadas. Apesar disso, elas são, num sentido brando mas significativo, racionais; elas são caracteristicamente sustentadas por argumentos, suportadas por razões, estabelecidas sobre evidências. (33)


Bibliografia

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SEDLEY, D. Creationism and Its Critics in Antiquity. Califórnia: University of California Press, 2007.

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VICO, G. The New Science. Nova York: Cornell University Press, 1984.

Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Editora Vida, 1994.


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) Metafísica, A 3.

(2) Materialismo y empiriocriticismo, p. 48.

(3) F. NIETZSCHE, Philosophy in the Tragic Age of the Greeks, p. 42.

(4) O sistema dos Carvakas pode ser resumido da seguinte maneira: os Vedas e quaisquer outros escritos sagrados são falsos; a única realidade é o mundo empírico; a alma imaterial e a vida após a morte são ilusões; a consciência é derivada da matéria; e a meta da vida é a obtenção do prazer. Cf. R. KING, Indian Philosophy, pp. 16-23.

(5) Na Ilíada, Posídon e outros deuses olímpicos auxiliam os gregos quando estes atacam a cidade fortificada de Troia: “De cima troou terrivelmente o pai dos homens e dos deuses; e, de baixo, Posídon abalou a terra infinita e os cabeços escarpados das montanhas. Estremeceram as faldas do Ida abundante em fontes, e a cidade troiana, e os navios acaios” (Canto XX).

(6) Questões naturais, 6.6.1. Segundo uma autoridade em sismologia, “Onde há abundância de água subterrânea próxima à superfície, fortes abalos sísmicos frequentemente produzem fontes, esguichos e gêiseres”. Cf. A. SINVHAL, Understanding Earthquake Disasters, p. 130.

(7) The Presocratic Philosophers, p. 3.

(8) PLATÃO, A república, Livro III.

(9) Metafísica, A 3.

(10) The History of Materialism, Livro I, Seção I, cap. I, p. 4 (nota 1).

(11) Para uma impugnação científica da teologia judaico-cristã-islâmica, cf. V. STENGER, God: The Failed Hypothesis.

(12) O corporeísmo de Hobbes remete ao de Tertuliano, o qual remete ao dos estoicos.

(13) Após negar a existência de uma realidade imaterial, Hobbes esclarece: “Não se segue daqui que os espíritos não sejam nada, pois têm dimensões e são portanto realmente corpos, muito embora esse nome, na linguagem comum, seja dado apenas àqueles corpos que são visíveis, ou palpáveis, isto é, que possuem algum grau de opacidade, mas quanto aos espíritos chamam-nos incorpóreos, o que é um nome de mais honra [...]”. Cf. T. HOBBES, Leviatã, cap. XLVI (grifos do autor).

(14) De anima, Livro I, cap. 2.

(15) Ibid., Livro I, cap. 5.

(16) Le bon sens du curé Jean Meslier, cap. XLI.

(17) D’Holbach et la philosophie scientifique au XVIIIe siècle, p. 188.

(18) Na física cartesiana, Deus é a causa do movimento da matéria, caracterizada pela inércia e pela passividade. Assim, o fenômeno do magnetismo é explicado pela circulação de partículas (impelidas por Deus) através e ao redor dos ímãs. A atração ocorre quando tais eflúvios expulsam o ar que existe entre o ímã e o objeto atraído. Cf. Princípios da filosofia, Parte IV, arts. 133-187.

(19) S. P. MARAN & L. MARSCHALL, Galileo’s New Universe, pp. 127-128.

(20) Isto é biologia, p. 321.

(21) Apud G. BORNHEIM (org.), Os filósofos pré-socráticos, p. 23.

(22) Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, Livro I.

(23) Ibid.

(24) Apud D. SEDLEY, Creationism and Its Critics in Antiquity, p. 7 (nota 21).

(25) The History of Materialism, Livro I, Seção I, cap. I, p. 13.

(26) Metafísica, A 3.

(27) Apud G. BORNHEIM (org.), Os filósofos pré-socráticos, p. 23.

(28) A ciência nova, Livro I, art. XXXIII.

(29)“Van Helmont plantou um salgueiro num vaso e descobriu após um período de crescimento de cinco anos que o peso da terra no vaso quase não se alterou, ao passo que o salgueiro ganhou cerca de 160 libras”. Cf. K. MENGEL & E. KIRKBY, Principles of Plant Nutrition, p. 296. Van Helmont acreditava que a massa adquirida pela planta não provinha da terra, mas somente da água, deixando de levar em conta a contribuição do dióxido de carbono oriundo do ar.

(30) R. BOYLE, The Sceptical Chymist, Seção II.

(31)“Tales, o milésio, [...] afirmou que a água é a origem das coisas; e que Deus era a mente que formou todas as coisas da água”. Cf. On the Nature of the Gods, Livro I.

(32) De acordo com Robert Boyle, a doutrina da água como princípio “é atribuída a Tales, a Homero, a Hesíodo, a Moisés e aos fenícios, os quais ensinaram que a terra era feita de água; e supõe-se que Tales a tomou deles”. Cf. R. BOYLE, The Sceptical Chymist, Seção II. Deve-se notar, entretanto, que Tales foi o único a oferecer uma sustentação racional para essa opinião.

(33) The Presocratic Philosophers, p. 3.

2 comentários:

  1. Excelente, cara, forneceu-me um ótimo material para aulas e estudos acadêmicos também, valeu!!!

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